BANDE À PART - JEAN LUC GODARD E ANNA KARINA

   Para se gostar de Godard em sua primeira época, aquela que vai de 1959 até 1965, fase que termina com o rompimento com sua musa, Anna Karina, é preciso se ter senso de humor. Isso porque seus filmes de então são desconstruções de tradições, leves reflexões sobre a absoluta liberdade de filmar e de viver. E se voce não possuir esse descompromisso e essa juventude libertária, nada feito. Voce vai procurar portos seguros nestes filmes-oceanos e nada irá encontar. Pensará então que este é um filme a deriva. Voce é que pensa como âncora.
   O filme foi feito em 25 dias e nesse ano Godard lançou 3 filmes. E meio.
   É sobre uma dupla de gatunos que envolve uma mocinha ingênua em crime. Roubarão a casa onde ela vive com a tia. Isso dito, o filme é tudo o que um filme de crime não deve ser. Ele divaga, se desvia. Quando surge a vontade de falar de um livro, se fala de um livro. Se há o desejo de dançar, se dança. E se surge o vazio de ideias, nasce o silêncio. Longe do realismo e longe de Hollywood, o filme é um quase nada, uma desconstrução que diz em alto e bom som: -Fazer um filme é uma brincadeira!!!! Nada há de sagrado nisto!!!!!
   Bem, se voce é Godard a coisa anda. O problema é que um monte de gente acreditou neste filme e passou a filmar tudo o que vinha à cabeça. Voce conhece o resultado...
   Quando vejo este filme sempre penso em meus jovens colegas de USP. O espírito do filme é o mesmo. Uma ingênua vontade de tentar coisas diferentes. Só que o filme veio 50 anos antes. E ainda é magnificamente jovem.
   Quentin Tarantino nomeou sua produtora com o nome deste filme. E em Pulp Fiction várias cenas são homenagens a o que vemos aqui. O papo furado dos bandidos no carro, a dança dos bandidos em uma lanchonete, a mocinha ingênua e de voz de criança, o jeitão relaxado e improvisado do filme inteiro. Aliás a cena na lanchonete é inesquecível. Ela nada tem de especial e incrivelmente tem tudo de que o cinema precisa. Antes eles fazem um minuto de silêncio por não ter nada de bom para dizer ( certos filmes deveriam ter duas horas de silêncio ), e depois improvisam a dança que é encantadora. O sorriso de Anna Karina ao final é deleite puro.
   É neste filme também que ocorre a famosa cena do Louvre, que é visto pelos três em nove minutos ( cena que Bertolucci cita em seu filme com Eva Green ). É outro improviso entre vários outros.
   Destaco também a fotografia natural de Raoul Coutard e esse é um segredo de Godard. Seus filmes naturais davam certo porque Raoul sabia filmar tudo em todo lugar com qualquer luz e em qualquer situação. Este filme é todo de rios sujos, ruas feias, árvores nuas, neblina e lama. Talvez o personagem mais importante seja esse ambiente úmido e pobre.
   Eu sou apaixonado por Anna Karina. Então prefiro nada mais dizer a não ser que Jean Luc Godard foi grande enquanto ela esteve a seu lado. Depois dela, o quase nada.
   Imperfeito, chato, rustico, improvisado e muito inspirador. Assistir este filme é injeção de vontade de criar. Godard não fazia grandes filmes, fazia peças de desejo de se fazer. Este filme dá esse desejo.
   Não é pouco.