E o livro de André Comte-Sponville termina com a virtude amor. É o capítulo mais longo ( 40 páginas ) e um belo final para um livro viciante. Senti uma grande tristeza quando o terminei. Me acostumei com as lições virtuosas, com o modo claro e muito instigante de Sponville. E compreendi tudo o que ele diz. Livro virtuoso. Para falar de amor, Comte-Sponville usa a ajuda de Platão, de Aristóteles e de Spinoza ( nomes constantes em todo o livro ), mas aqui ele acrescenta Stendhal, Freud e Simone Weill. E é essa mulher, Simone Weill, quem escreve a mais bela página sobre o amor que já li. Mas vamos pelo começo.
Primeiro fato: a moral só existe onde não existe o amor. Mais: as virtudes são necessárias por sermos pouco amorosos. Se o amor fosse mais comum, tanto moral como virtude seriam dispensáveis. Problema: Não amamos o que queremos amar. Amamos o amor e o inferno é viver sem esse dom de amar o amor ( e não o de não ser amado ). Então André passa a analisar o mais conhecido e influente texto ocidental sobre o amor. O Banquete de Platão e a imagem que Aristófanes propõe: a dos hermafroditas. Amamos a metade que perdemos e o amor verdadeiro é encontrar a outra metade. André logo a destrói citando o final do mesmo livro, onde Sócrates diz que amar é uma falta, um vazio. E é então que começa a exibição de verdadeira filosofia de André Comte-Sponville.
Ele demonstra a validade plena desse pensamento. Nos convence de que o amor é sim um desejo de preenchimento, uma vontade de encontro. Ele é esse desejo, e não o encontro. Ao sermos unidos perdemos esse desejo e imediatamente sentimos que o amor foi traido. Para a sobrevivencia desse amor é preciso a não-satisfação, a ponte que não une, a distância. É a paixão exigente, o sempre querer mais e mais, a vontade de posse absoluta. O amor é então esse não ter, esse não conseguir, essa derrota. Citando De Rougemont, ele logo percebe que é um amor mesclado a morte, que só pode sobreviver nela e que procura-a como ponto mais elevado e final. Esse é o amor que domina o ocidente, o amor louco, o amor ansiedade, o amor dolorido. Mas, eis que o autor resolve falar do amor como potência, o amor do qual fala Spinoza.
Indo contra Platão, Spinoza chega a idéia de que o amor não é uma falta, um vazio, mas que ele é antes uma potência. Ele é uma força que nos empurra a ação, uma energia que não é imortal mas que é a vida em sua plenitude. A tristeza que há em casais rotineiros, em sexo mecânico, não é o vazio do amor mas sim a potência exigindo sua ação. Ora, se o amor é uma potência, se ele é a vida, o amor é uma alegria. Esse é o ponto oposto a Platão que vê no amor uma tristeza. Para Spinoza não é o amor que deve ser culpado, mas sim nossa falta de coragem e de talento para o viver. A vida pode ser triste e disso o amor não é culpado, muito ao contrário.
Comte-Sponville demonstra essa verdade com vários exemplos, e diz que além de vivermos numa cultura platônica, não percebemos que amor não é fuga, pois amamos coisas que não mudam, não fogem e que são simples. Amamos uma praia, um animal, uma música, um amigo, um filho. Esse amor jamais arrefece e o amado não muda, não desaparece, e nada tem de misterioso. Então porque existem tantas pessoas incapazes de amar em paz? Que só amam o que não possuem? A resposta está no próprio amor. O amor incompleto, possessivo, é um amor não-virtuoso, ainda sendo amor, mas nada tendo de virtude. É amor que exige, que proibe, que não espera. Amor que não possui doçura, humildade, compaixão, justiça, generosidade e principalmente gratidão. É amor que é apenas desejo erótico e mais nada. Amor centrado no ego de quem ama, amor que quer se amar através do outro. Amor egocentrico então.
O amor em paz e alegria é o amor phillia. Amor amigo ( e todas as adolescentes odeiam sequer imaginar que possa haver um amor amigo ). Amor que dá e que agradece. Amor que acaricia, que suaviza, que escuta. Onde há o desejo erótico, mas não a posse absoluta. Justo, humilde ( ele sabe não ser merecedor ), doce. Nesse amor o objetivo não é ter, é conhecer, não é possuir e sim dividir. Nada de união de metades e sim a formação de vários seres. Companheiros.
Seria lindo se tudo fosse só isso, mas não é. E é então que Comte-Sponville nos arrasa. Mostra que amar é eros sim, que é vazio sim, e que amar também é potência e alegria, amizade e paz. Mas que mesmo assim ainda o achamos incompleto, temos a sensação de que deveria e poderia ser mais. Mais o que? E por que?
Vem a parte final, parte que me fez chorar ( e é muito raro eu chorar com um livro ), parte que tem o texto de Simone Weill, e onde o ateu André Comte-Sponville fala basicamente de Deus ( para depois o negar ).
Começa falando do leite materno. E cita,para então complicar, Freud. Sim, nasce aí nossa referencia de amor. Mas é mais que eros, mais que incesto, mais que tabú. É sacrificio. O amor de mãe e de pai é um amor que se sacrifica. Se amando o objeto que desejamos nós nos homenageamos através dele, se com o amor amigo nos aconchegamos nele, no amor de familia tudo é amor sem esperança. É amor que sabe que será abandonado, mais que isso, deverá ser abandonado. É o amor em sua mais profunda expressão humana. O amor que vai além do dar, o amor que se sacrifica. Continuemos.... André Comte-Sponville cita então o texto de Simone Weill, texto maravilhoso que fala do amor de Deus ( pois André começa a indagar como Deus poderia amar o homem e deixar que tanto mal acontecesse a seus amados filhos ). Para Simone, Deus amou tanto que se ausentou. Ele se sacrifica e se distancia para ver seus filhos crescerem, para vê-los sobreviver e amadurecer sem Ele. Cristo na cruz seria explicado então. A beleza do texto e engenhosidade é tamanha que meus olhos se encheram de dor ao imaginar tamanho amor da forma como ela descreve ( forma que aqui não há como reproduzir ). André diz então: como Deus não existe, o que nos importa esse amor sobre-humano, divino? Importa porque ele nos mostra que o amor só pode ser completo se formos além do próprio amor. Como? Amando não o desejado, não o amor amigo e nem mesmo o filho. Amando o inimigo. O autor é ateu mas passa todo o livro, como justo e virtuoso que tenta ser, citando e elogiando o que existe nos evangelhos e em filósofos cristãos ( e para ser ateu é preciso conhecer e entender o porque da fé ). O amor se realiza completamente se ele for amor incondicional, amor a tudo, principalmente a quem lhe é estranho. Pois o amor não é vazio, não é ego ou desejo de posse, amor é transcendencia, é aumento, é anular a si e expalhar-se pela vida. Voce pode e deve amar sua mulher, seu amigo, seus objetos, mas não pode tolher o amor a apenas isso. Essa a lição de Deus, de Cristo, de Buda. O amor está além de nós, ao redor de nós. Platão acertou, Spinoza acertou, Stendhal acertou, mas erraram também por não perceber que ele não é eu e voce, ele não é nós, ele é tudo. Dirigir esse amor a uma pessoa, seja ela amante ou esposa, a vinte amigos ou a uma profissão é não saber viver esse amor vivo.
Como toda virtude, só sábios e santos podem atingi-la, mas o que devemos fazer é reconhecê-la e tentar, humildemente, honrá-la. Em outra postagem irei transcrever o texto de Simone Weill.