CELTAS X ROMANOS, UM NÓ GÓRDIO, ARMAND HOOG

Na introdução a edição de PERCEVAL que tenho, há um texto muito bom de Armand Hoog que me fez pensar muito. Vamos ao que ele diz ....
Que poetas e historiadores romanos, falemos a verdade, não emocionam ninguém. Seja epopéia, seja mitologia, tudo o que Roma nos deixou é feito de blá blá blá sem fim. Uma verborragia bela e vazia, fria e indiferente ao que sentimos.
Os contos, poemas e lendas que nos emocionam nascem na idade média em meio aos ditos bárbaros. São eles que nos deixam o que entendemos por "arte que emociona". Mas essa criação ( que tem no ciclo arturiano, nas canções de Rolando, em Tristão e Isolda e Perceval, seu nascimento ) não é pura. Assim como o dia 25 de dezembro é uma união de cristianismo adaptado a comemorações celtas, a arte poética que vem até nós dos tempos medievais, é uma mistura muito natural de mitos bárbaros tingidos com cores cristãs.
E isso se dá de forma natural e lógica. Roma odiava toda religião bárbara. E para os romanos, cristianismo era tão bárbaro ( e incompreensível ) quanto cerimônias vikings. Roma adapta o cristianismo a sua politica quando vê nele a nova força que poderá unir seu império, mas jamais entendeu o que ele fosse. Criaram a politica católica, mas nunca entenderam o que seja religião.
Há uma pobreza espiritual constrangedora no mundo romano. Seus deuses nada possuem de grandioso, nada exigem de transformador. O mundo de Roma é todo voltado para o exterior, para a vida a serviço do estado, da politica e da guerra. Nesse tipo de sociedade, onde tudo o que tem valor passa pelos olhos do outro, a vida interior é muito pobre, a alma confunde-se com a carne e portanto a arte aí produzida é fria, distante, nada visceral. Técnica apurada, e um blá blá blá sem fim.
Enquanto isso os bárbaros produzem uma arte muito mais tosca, sem grande técnica e sem muita elaboração. Mas tudo é pura emoção, abundam acontecimentos, a ação nunca cessa e o mistério, a noite, a fantasia estão sempre presentes. É arte vital.
Até os dias de hoje nós vivemos dentro desse conflito. A ordem romana contra a ebulição celta. Certos períodos de nossa história pendem para nosso lado racional, ambicioso, amante de jogos verbais, o lado romano. Outro momentos vêm o renascimento da luz celta, da arte do sonho, da individuação, do delirio, do frenesi.
Tudo no mundo romano é imperial. Estradas, cidades, exércitos e leis. Roma pensa sempre em expansão, em comunicação, em integrar. O pensamento bárbaro pensa em fortalecer o clã. E cada clã é isolado, fundado por laços de sangue. Roma institui o discurso, o senado, o jogo de poder. O chefe celta é sempre o patriarca, o depositário da história do clã.
Roma luta com legionários. E os legionários são disciplinados. São peça de um todo e nesse imenso organismo ele é anônimo. O exército celta é anarquista. Cada um tenta ser maior que o todo. Todo guerreiro tem seu uniforme particular, sua bandeira, sua honra. ( E escrevendo isto não há como não pensar em porque a Inglaterra venceu França e Espanha em guerras decisivas. A Inglaterra sempre foi a herdeira de Roma, assim como os EUA são hoje. Enquanto os fidalgos espanhóis pensavam em se exibir na batalha e os sires franceses não admitiam obedecer um lider, os soldados ingleses lutavam como operários da guerra, legionários bem treinados e anônimos ).
No vazio espiritual de Roma ( acredite, Roma criou o ateísmo ) se institui o circo. O vazio espiritual é preenchido pela hiper-valorização do corpo. Emoções para os olhos, para os ouvidos. Sexo ocasional, orgias de comida e bebida, carnaval. A violência torna-se espetáculo.
Mas o que dá sentido a vida da civilização romana ? O crescimento sem fim. O que define Roma e lhe dá sentido é a crença em que "tudo leva a Roma", a certeza de que eles são o único povo civilizado, de que são os criadores do futuro. Roma, como uma doença, só existe enquanto cresce. Um povo bárbaro não pensa em termos de crescimento. A guerra é para eles prova de valentia, rixa entre familias. Sua existência é justificada pela própria vida. Eles não se preocupam com futuro ou com certo e errado, tudo o que desejam é ser o que já se é.
Quando irrompe a alta idade média temos o encontro entre a politica romana e o inconsciente bárbaro. A igreja se forma como politica romana, mas cheia de apelos e símbolos celtas. Todas as heresias dentro da igreja são sintoma dessa dualidade. O catolicismo tenta cumprir dois papéis : organizar o mundo real e aplacar a sede religiosa. Nunca consegue.
A sina do mundo ocidental passa a ser essa. Como conciliar em nós essa racionalidade romana e essa febre bárbara que pede mais vida e mais magia ?
Cavaleiros medievais, poetas romanticos, simbolistas, beatnicks e hippies, anarquistas, busca por religiões orientais, tudo é sinal da alma celta que insiste em crer, em criar e em rir. Tudo é essa raiva da conformação romana, da vida em cidade organizada, da vida em função do bem do estado.
Para terminar um adendo :
Se sofremos esse conflito na carne, imagine um africano, recém saído de mundo totalmente bárbaro, às vezes canibal, tribal. Como é sua adaptação a mundo romanizado que nem mesmo nós, antigos celtas, antigos árabes, aceitamos em paz ?