O AMOR E O OCIDENTE- DENIS DE ROUGEMONT

Porque acreditamos que só a dor ensina? E pensamos que tudo o que vale a pena vem com sofrimento? Porque toda paixão é insolúvel e infeliz? E principalmente, porque amamos essa dor de amor e lembramos com saudade aquela que nos fez mal maior? O que significa viver de verdade? Porque casar e ser feliz não rende filme, livro ou música e sofrer de amor rende admiração e 99% dos romances? De onde vem essa dor?
O homem ser masoquista não responde nada. O instinto de morte também nada diz. Quero saber porque esse instinto ( anti-natural ) existe. Denis de Rougemont, em 1938 lança este livro e em 1957 o revisa. É hoje tese irrefutada. Obrigatório.
Ele começa demonstrando a maior revolução psíquica da história: o século XII, o momento em que o casamento entra em crise e nasce o amor cortês. Primeiro os sintomas:
Antes a paixão era vista como doença, o casamento como a paz, a infidelidade era permitida e o homem se interessava sobretudo por política e guerra. O principal: a sabedoria viria pela vida. Viver era aprender.
A partir do século XII se instaura a crença de que se apaixonar é viver de verdade. O apaixonado é um herói. O casamento se torna a morte da paixão. O homem passa a se interessar por amor e poder e o saber nasce da dor, do sofrimento. Viver de verdade é sofrer e renascer.
Para explicar o porque dessa transformação ( que nada tem de cristã e sim de pagã ), Rougemont nos conta a saga de Tristão e Isolda, nascimento de todo romance e o movimento dos cátaros, irmandade herética que foi aniquilada pela igreja católica.
A saga de Tristão conta a história de cavaleiro que é enviado por rei a terra distante. Lá ele deverá escoltar princesa prometida a seu rei. Caindo vítima de feitiço, os dois se apaixonam, mas não realizam esse amor. Criam motivos para não se amarem e Tristão acaba por se casar com outra mulher, também chamada Isolda. A verdadeira Isolda casa-se com o rei e percebemos que o que os move é o amor ao amor e acima de tudo, UM IMENSO DESEJO DE MORTE. Apaixonados flertam com a morte. Eles enfrentam reis/maridos/noivos/tabús/perigos físicos; apaixonados bebem, tentam se matar, não comem, se desligam da vida, evitam amigos, evitam a família, se jogam. Apaixonados jamais se saciam e se um dia se saciam, MATAM esse sentimento. Tristão, no mágico século XII nos mostra tudo isso. Toda a tradição do romance está lá exposta. Mas, porque foi e é assim?
No tempo de Tristão a igreja cristã ainda lutava por se estabelecer. O casamento, base da sociedade, estava em crise. E seitas heréticas orientais apareciam. O europeu ainda estava próximo do paganismo. E principalmente: as pessoas ainda sabiam o porque de seus símbolos e de suas palavras. Ainda se sabia o porque da paixão e o porque de palavras como agonia, luz, noite, almas gêmeas, sede de corpo, sacrifício e doação.
Os CÁTAROS surgem no sul da França e falam provençal. Logo se espalham pelo norte da Itália e pela Ibéria. Fazem música e poesia. E têm uma visão dualista da vida. A igreja cristã irá os perseguir com furor e nada de seus passos restará. Mas, que ironia, inconscientemente carregamos sua herança. A poesia e a paixão, tal como a conhecemos nasce com eles. Suas imagens sobrevivem em nós, mas de modo cada vez mais pobre, cada vez mais vulgar, pois perdemos a chave de seu significado.
Eles acreditavam que o mundo foi criado por duas entidades. Deus criou o mundo do espírito. Lúcifer o mundo da matéria. Como homens, sentimos um grande desconforto em nosso corpo material e ansiamos de saudades pelo espírito, que vive no céu. A mulher é a guardiã das almas, ela através da maternidade faz nascer o corpo de Lúcifer/material, mas é ela também que pode levar o homem ao reino espiritual.
O amor é Deus, pois é espírito. O mundo é o mal, pois é Lúcifer. Sua igreja passa a se chamar A IGREJA DO AMOR.
Zombam do casamento cristão, pois o casamento abençoa a fornicação, e pregam a castidade, como única forma de amar espiritualmente. Mas fazem sexo carnal, SEM AMOR. Caminham pelas estradas cantando. Instituem a anima: saudade da perfeição.
Fato notável : é nesse tempo, onde a mulher deixa de ser banal e passa a ser mágica, que se modifica o jogo de xadrez. Surge a rainha, peça acima do rei. E nasce também uma crença bem conhecida: o mundo tem milhões de putas e apenas duas puras: a mãe e a amada.
Rougemont nos fala de uma crença da India. Para fazer a paixão nascer, voce deve dormir junto sem fazer sexo, depois beijar sem se tocar, e por fim transar, sem ejacular. Para a paixão se manter viva, sempre alguma coisa deve faltar. Há muito disso no amor cortês.
Com os cátaros, a poesia deixa de ser épica e se torna drama interior.
Para eles o pecado maior, base do casamento, É FAZER SEXO SEM AMOR com a benção da igreja!!! Violação de espírito e de alma. Sexo sem amor é descer ao nível mais material da vida. O bem maior é SEXO COM AMOR, encontro do eu com o outro eu, momento de ver que "eu sou voce". Mas esse momento só pode se dar na exaltação máxima do desejo, após todo um ritual galante, que visa aumentar a paixão, mantê-la. Sexo com amor é momento ápice de vida e entrada no reino noturno da morte, o encontro final com Deus.
Pois bem, essa é toda a criação mística do amor cortês. Cada sentimento e cada gesto tendo um significado profundo. Mas, com o tempo, toda essa mística se perdeu, porém tanto a linguagem como o hábito ficaram. Então sentimos " a agonia", "a dor", "o morrer em vida", "o prazer que dói", sem saber o porque de falarmos isso. Pior, nada tiramos dessa dor. Não mais sabemos para que serve a paixão, nada sabemos do sentido místico da união de espíritos que se unem para morrer.
Rougemont, que cita Freud várias vezes, diz que misticismo não é sublimação de impulso sexual, que arte não é sublimação, ao contrário, o sexo é que é um consolo, uma sublimação de um impulso místico. A vida da alma, ela exista ou não, é muito mais crucial e importante que o simples impulso sexual.
O século XIX, do qual somos ainda filhos obedientes, criou a "sabedoria" de que ser inteligente é REDUZIR O SUPERIOR AO INFERIOR. O significado ao significante, o espírito à matéria, o que é significativo ao que é insignificante. È um movimento que traduz o pensamento burguês: o que não compreendo não pode ter valor. É o ódio burguês ao poeta e ao aristocrata, dois parasitas que nada produzem.
Pois bem, se todo impulso sexual é um impulso rumo a alma, todo erotomaníaco é um MÍSTICO QUE NÃO SABE DE SUA CONDIÇÃO. Sua obssessão sexual, sempre insatisfeita, é uma ansiedade por transcendencia, por vida espiritual, por paixão; paixão que ele não sabe fazer viver, por matá-la todo dia em seu gozo imediato.
Do século XII até nossos dias, a história da paixão é a história do amor cortês cada dia mais profanado. TENTATIVAS CADA VEZ MAIS DESESPERADAS DE EROS SUBSTITUIR A TRANSCENDENCIA MÍSTICA POR UMA INTENSIDADE COMOVIDA.
Frase de La Rochefoulcauld : "Quantos homens se apaixonariam se jamais tivessem ouvido falar do amor?"
Mandamentos da Igreja do Amor:
Descrença na trindade
Alegria resplandescente.
Negação do casamento
Negação da guerra
Anticlericalismo
Vegetarianismo
Igualitarismo
Amor a mulher

Chegamos então a época carnal do homem: o século XVIII, época de luz, de racionalismo, de matéria. O amor se torna encontro de peles, contrato de bens, o flerte é um elaborado jogo de mentiras cujo único objetivo é a posse do corpo.
Mas é preciso SER para poder TER. Tristão tem uma mulher por ser um amante completo. Ele pode ter Isolda. No século XVIII Don Juan é amado por todas as mulheres, mas na verdade não pode ter nenhuma. Ele perdeu o dom do amor e passa a vida na busca, inconsciente, desse poder. Don Juan deixa de ser.
Juan procura a volúpia, Tristão realiza a suprema proeza: permanece casto. Pela não profanação, o amor de Tristão se eterniza e permanece jovem. Don Juan o profana e o mata.
Tristão é livre. Foge das regras, do pecado da carne ( não profana) e da obrigação do casamento. Não é religioso, pois não segue os rituais.
Don Juan está preso a seu instinto. Mais: ele precisa da sociedade para poder aviltá-la. Juan está preso a matéria.
ATENÇÃO! A castidade de Tristão não é a castidade dos padres. Tristão é casto por decisão de nobreza. Ele se dá esse compromisso. A castidade cristã é por imposição moral. Vem de fora.

Após o cínico século iluminista vem o romantismo.
O romantismo, já sem a chave mística do século XII, é sentimental, jamais espiritual. Usam todas as palavras, mas em sentido errado. Perdem a ingenuidade. Sentem que há algo por detrás da paixão, não sabem o que. Morrem ( literalmente ) pela amada, não pela alma.
Stendhal surge como o primeiro homem realmente moderno. Sente o vazio e o desejo de amar. Mas sua razão lhe diz que tudo é corpo, tudo é um DESEJO DO FÍSICO. Ele vive na angústia de ter de JUSTIFICAR RACIONALMENTE AQUILO QUE NÃO É RACIONAL.
Dá-se a invasão de romances, filmes, melodias de amor. Mas é um amor profanado, pobre, sem significado, vazio de mito, fadado a angústia do vazio.
Esse doce romantismo trai mais um desejo burguês: O DESEJO DE SE TER SEM SE PAGAR. Passamos a querer amor, mas sem abrir mão de nada, sem risco algum, sem morte.

Rougemont passa então a fazer algo que me deixou espantado: faz o paralelo entre a guerra e a paixão. E demonstra que o modo de se fazer a guerra sempre reflete a sociedade que a faz e a paixão que a inspira.
No século XII a guerra era ritual. Cavaleiros marcavam local e data para resolver a batalha. Não se lutava por um país. Lutava-se por um líder. Cada guerreiro tinha seu traje e seu brasão. Seu valor estava em sua alma: habilidade, fé e nobreza.
No século XIV a guerra se torna um negócio. Guerras são resolvidas por embaixadores. Soldados são comprados e às vezes a guerra se resolve so se comprar o exército inimigo. Há um horror pela morte: tenta-se matar o mínimo possível. Essa forma de guerrear termina com o canhão. Arma que é considerada covarde e imoral. Arma que torna o combate inútil.
No racional século XVIII se civiliza a guerra. Táticas, cidades abertas que não podem ser atacadas, movimentos matemáticos de tropas, campos de batalha escolhidos por seu bom ar, regras de captura. Até então o objetivo de toda guerra é a captura do chefe inimigo.
A partir da Primeira Guerra o objetivo deixa de ser capturar o chefe rival ou adquirir território. O objetivo é DESTRUIR COMPLETAMENTE O INIMIGO. Toda regra é jogada ao lixo. O soldado torna-se máquina de matar e resto de batalha. Não se deseja vencer para ter, deseja-se destruir.
Toda a evolução do modo de se ver e fazer a guerra acompanha toda a relação do homem com sua paixão. Desde a guerra como ideal nobre e de fidelidade, passando pela guerra como exercício de elegancia racional, até a GUERRA EXERCIDA SEM QUALQUER SIMBOLISMO. Apenas a captura e destruição do oposto.

Já na parte final do livro, Rougemont faz uma jogada de mestre ao defender o casamento!!!!
Como? Mas ele não demonstrou a verdade simbólica da paixão? Sim. Ele passa 3/4 do livro nos seduzindo com a beleza da paixão e da cortesia. Mas ele é inteligente demais para não perceber que essa paixão, CHEIA DE SIGNIFICADO, é irrecuperável. Jamais poderemos voltar à paixão como encontro com a morte gloriosa. Essa paixão hoje é apenas um impulso desprovido de sentido. Perdeu-se seu código, e isso está morto e esquecido. Para sempre.
Rougemont passa a dizer então o que realmente significa o casamento.

O cristianismo surge como única religião que se propõe a viver o real.
Esse é o milagre do cristão. O mundo real não é a ilusão de que fala o budismo e nem o mal de que falam os cátaros e os orientais. Não é mundo de fadas como dizem os celtas. E mais que isso, o mundo real é criação de Deus.
Pois então é a religião cristã, e só ela ( e é fácil verificar isso ) que pressupõe o crescimento da ciência e da tecnologia. Se Deus criou a matéria, cabe a nós nos interessarmos por ela, amá-la e aperfeiçoá-la. Ao contrário do Grego, que estudava o real com interesse frio, o cristão ama o real como parte de Deus. Seu semelhante torna-se parte também desse Deus, e é então no cristianismo que surge um conceito que SUBSTITUE A PAIXÃO: A COMPAIXÃO. Ao contrário da paixão que só enxerga o ser amado, a compaixão vê o todo, e ao contrário da paixão que pensa estar a felicidade apenas na morte com o amor, na compaixão a felicidade pode estar aqui e a salvação pode ser agora.
O casamento é então um estar junto em compaixão. Um caminhar no mundo real, um tentar se adaptar ao mundo verdadeiro. Servir e se apacientar.
Se para o cortês se apaixonar é morrer dia a dia ( em felicidade trágica ), para o cristão, amar é viver. Se o compromisso da paixão é com a amada e mais ninguém, o compromisso do casamento é com este mundo.
O casamento é uma escolha.
A paixão é um feitiço.
Não há melhor definição da diferença entre o paganismo e o cristianismo.

Rougemont ainda discorre sobre Wagner e o ponto máximo da paixão em música, do amor de Romeu e Julieta e dos poetas alemães.
Livro indispensável para quem pensa em amor e paixão, para quem já amou com Eros e com Ágape, para quem, como eu, já morreu de paixão pagã e já amou de ágape cristã ( mesmo não o sabendo ).
Um clássico.