O AMOR E O OCIDENTE- DENIS DE ROUGEMONT

Leia esta segunda parte após o texto postado abaixo.
Volto ao tema por considerá-lo fascinante. E aproveito para contar duas histórias reais.
Me apaixonei em 1998. De forma fulminante. E fui maravilhosamente correspondido. A nossa história se desenvolve de uma forma que confirma tudo o que é descrito no livro de Rougemont. Atenção: em 98 eu não conhecia o livro.
Eu e essa menina começamos a sair. Primeiro obstáculo, a idade. Segundo, ela era amada por amigo meu. Terceiro, o estilo de vida dela. Mas saíamos sem planejar nada. Simplesmente íamos ficando juntos após as aulas, conversando e rindo. Jantávamos e entrávamos no carro dela. Mais conversas e então adormecíamos. Dormíamos juntos, no carro, sem nos tocar, sem nada saber. Depois de uma semana assim, começamos a dormir abraçados. Acordávamos na rua, vidros molhados, em absoluta castidade.
Posso dizer, com certeza, que jamais fui tão feliz. Ir para a escola após dormir ao lado dela era adentrar o céu. E uma noite a beijei. Apenas beijo, longo e faminto beijo. E se fez o namoro. Apaixonado e infernal.
Todo dia havia uma briga, toda hora um motivo criado para o medo de perdê-la. Todo dia a reafirmação da paixão. Choro, loucura, muita bebida, perda absoluta de controle. Neste nosso mundo só havia eu e ela, e meu único desejo era estar com ela, mesmo no inferno em que nos enfiávamos.
O sexo era bizarro. Eu não a penetrava. Ela gozava com infindáveis preliminares. Eu segurava meu prazer. Eu estava a anos de saber que essa é uma técnica hindú. Eu pensava ser apenas neurose ( é fantástico como dizemos "é neurose" e tudo está respondido ).
E como dois amantes do século XII, sem o saber, e portanto perdidos em atos sem simbolismo, em movimentos inconscientes e cegos, começamos a flertar com a morte.
Hoje eu saberia que toda paixão leva a morte. A morte da própria paixão ou a morte simbólica daquele que voce era. Eu saberia que a paixão foi um movimento real, religioso, que via nesse sentimento uma ascese. Já que o mundo era o mal, a paixão nos levaria a "morte maravilhosa", ao encontro com Deus através da mulher amada. Se o mundo material é de Lucifer, é o amor-paixão nossa vingança.
Mas eu não tinha toda essa chave. Eu me debatia em sentimentos que nada significavam. Apenas o desejo de tê-la e o impulso de profanar esse amor. Pensei que fosse morrer. Na verdade eu queria e pensei em morrer. O sentimento era tão forte que me levava ao absurdo. E ela, pobre menina, caminhava comigo rumo à dissolução.
Tudo morreu em mistura de ódio, tristeza, sangue, vazio absoluto e saudade. Daria um milhão de histórias e está o sentimento vivo, em algum canto de mim.
Para sempre.
A confirmação de Tristão.
Mas existe o casamento cristão. Um outro modo de ter amor. Um modo oposto a paixão.
Conheci uma menina. E por ela ser nobre, ser bonita, ser alegre e amorosa, eu escolhi amá-la.
Conscientemente e dono de mim-mesmo ( como um cristão, ser que não é guiado por magia, que não crê em Eros ) eu decidi que ela seria minha companheira para sempre. Eu planejei ter filhos e casar. Eu resolvi fazê-la feliz e ser dela. Agape. Me doei.
Não há o que contar. Não foi Tristão e Isolda. Wagner não faria a música. Mozart a faria. Foi feliz, sem dramas, com humor e leveza. Mas terminou.
Terminou também sem dramas, por motivos reais, sem loucura. Foi um amor cristão.

Nós tendemos a não dar valor a herança cultural que trazemos em nós. No máximo admitimos o inconsciente freudiano e a influência da sociedade e do mercado. Esquecemos dos milhares de anos de paganismo e de religiões exotéricas em que todos vivemos. Esquecemos.
Mas tudo está lá, em nós. Guiando nossos atos e nosso destino. Fazendo com que vejamos imagens e falemos palavras que já não têm seu significado original. Mas que ainda são vistas e ouvidas. Somos como macacos treinados, usamos coisas sem saber o que significam.
Dou um exemplo clássico:
Todos pensam no Édipo como o desejo do filho pela mãe e a proibição dada pelo pai. O que esquecemos é que entre os celtas o incesto era tolerado. E não pensamos mais no que essa mãe simbolizava.
A mãe é a volta ao antes de nascer. O impulso é o de voltar ao éter, volta ao estado de não-nascimento. Para o homem, a mulher sempre significará essa possibilidade: sair do mundo material e através do amor voltar ao mundo do espírito. O pai é o dono da clava, o que obriga-nos a aceitar a vida, a respeitar a missão, a não se entregar a morte.
Verdade? Fantasia? Quem sabe?

Outro belo dado do livro.
Tendemos a super-valorizar o oriente como terra da sabedoria. Sem dúvida eles têm muito a nos ensinar. Mas perdemos o hábito de pensar no que o ocidente é diferenciado. Explico.
No Iran se apedrejam adúlteras e na Arábia cortam a mão de ladrões. È claro que aqui vivemos em meio a crueldades e abominações, mas hã uma diferença: o conflito. O cristianismo, movimento que define o ocidente, dá pela primeira vez ao homem a idéia do bem.
Tanto a indiferença budista como o fatalismo islamico não se preocupam radicalmente com o amor ao próximo. Se nós ainda torturamos e matamos, sofremos como um todo com isso. Antes do cristianismo, a crueldade era ato de indiferença. Amor ao próximo foi momento de maior revolução. Radicalismo absoluto.

Vivemos desde então nesse embate entre um lado nosso que é obscuro, pagão, misterioso. Esse lado vê o mundo como treva, reino do mal e dá a cada ato a irresponsabilidade de ato inconsciente. Foi um deus ou um fado que nos fez fazer aquilo. Esse nosso lado crê na absoluta dualidade. E a paixão é aquilo que nos deixou de herança. Apaixonados somos pagãos todo o tempo. Passamos a viver num inferno terrestre com olhos para o céu ideal. Flertamos com a morte e nos dsligamos do mundo. E principalmente: cremos que tudo foi um destino, uma flecha de Eros, uma fatalidade.
O nosso outro lado, cristão ( mesmo para ateus ), cuida do jardim de Deus. Aceita o sacrifício do casamento e sabe que tudo se resolve aqui e agora, não no além. Além do amor ao outro, o cristianismo nos deu esse conceito de tempo: a vida é para ser vivida. Não se deve ser indiferente a ela, não se deve desperdiçar esse dom dado por Deus. Se no Japão o sucidio é um nobre ritual, aqui é um crime, jogar fora um presente divino. No cristianismo a vida é valorizada como jamais antes.

O primeiro mandamento: Amai a Deus como a si mesmo.
Qual o primeiro verbo? Amai. Amar a Deus ( aquele que te criou, ou seja, amar o ato criativo ) e amar a si mesmo ( valorizar sua vida e seu próprio amor ).
Ateu ou não, ninguém inventou melhor conselho desde então.