MONTAIGNE, BURNS, SAKI, VILLON E ETC

Quem leu sabe : Montaigne foi o primeiro e o maior dos blogueiros.
Vejamos.
Nasceu em família enriquecida e recém nobilizada. O pai, esclarecido, o educou de forma erudita : acordava ao som de cravo e os empregados só podiam falar latim com a criança. Montaigne cresceu feliz e estudou com prazer. Lia muito, principalmente Seneca e Plutarco ( como Shakespeare ) e viveu uma juventude de vinho, mulheres e amigos. Encontrou em La Boetie o único amigo que lhe compreendia. Mas morreu cedo, esse Ettiene de La Boetie. Já casado, pai de família, Montaigne, triste e incapaz de se permitir ter prazer, em luto pela morte de Ettiene, se isola no castelo da família. Escreve um livro. Um livro para ser lido apenas pelos amigos. Um livro que não poderia interessar a ninguém, pois seu único assunto era o próprio autor. Montaigne diz isso na introdução. É um livro escrito para a cura de quem o escreve. Michel de Montaigne escreve como fala, e intui que falar cura. Não a toa ele é o Freud original.
Ele ainda lutaria uma guerra, seria prefeito de Bordeaux e participante das lutas religiosas da França do século XVI. Shakespeare lhe deveria tudo. Emerson também. Montaigne é o primeiro homem moderno da Terra. Ele nos inaugura.
O que é o livro ? Um blog. Ele discorre sobre o que pensa, o que leu, o que viveu. Os capítulos, muitos, falam do amor, da morte, da honestidade, mas também falam de trivialidades, de comida, de bebida, de roupas, de modas, de tudo que o constitui. E ele usa a linguagem do amigo. Conversa conosco, dialoga, educa. Inaugura a crônica, a confissão do anônimo, a biografia do não-célebre, a despretensão na escrita. Ele cai em contradições, desmente, desnorteia. Mas é sempre simples, claro, amigo.
Sempre releio trechos de Montaigne, mas nunca leio seu livro inteiro. Foi feito para ser visitado. A intuição que o levou a escrever é coisa de bruxo. Ele foi o futuro.
Lí Robert Burns pela primeira vez. É o poeta nacional da Escócia, assim como Keats é da Inglaterra, Goethe da Alemanha, Pushkin da Russia e Whitman da América. Shakespeare é o poeta do Ocidente. O nosso é Drummond e Camões é de Portugal.
Burns escrevia canções. Seus poemas são letras de música. Muito simples, rimas fáceis, vibrantes. São poemas de bar. Seus assuntos são : bebida, comida e mulher. Vibra de prazer, mas também de revolta contra a opressão inglesa. Poemas para serem lidos aos gritos, rindo, bebendo, em paixão. Burns andou pela Escócia a pé, aprendendo o canto do povo e ao valorizar a raiz escocesa ( ele escrevia em escocês, não em inglês ) Robert Burns ajudou a criar o romantismo. Ele anuncia a valorização da alma do poeta como antena do povo.
Também tomei contato com François Villon. Villon foi ladrão e religioso, político e condenado. Fugiu, mentiu, escreveu muito e foi preso. Sua época, a mesma de Camões, Cervantes e Rabelais, é a época do literato-soldado, do intelectual-herói, do aventureiro-pensador. Seus poemas, muito franceses, são o oposto de Burns : elaborados. Falam de Deus, da morte, do sexo e da devassidão. Difícil.
E tem H.H. Munro, vulgo Saki. Contos da era Eduardiana. O melhor tempo da Europa, o último grande tempo ( 1890/ 1914 ).
O que foi essa era ? O apogeu do poder material da Europa ( as custas da exploração da Asia e Africa ). Eduardo, rei, foi um grande gastador. E como todo inglês adora copiar seu nobre mais querido, os ingleses começaram a gastar, a esbanjar, a desperdiçar. Surgiram os exageros : casas de mármore com paredes revestidas de seda, quadros, vasos às dúzias, estatuetas italianas, bronzes, móveis de jacarandá do Brasil, tapetes persas, espelhos de cristal belga, bengalas, cartolas, empregados, carruagens, viagens com 15 empregados, porcelanas, esnobismo. É o mundo de Wilde, Carroll, Wells, Shaw, James e depois de Wolff, Huxley, Waugh e até de Lawrence. Mundo de Saki.
Seus contos são hilários. Três páginas apenas. E o tal nonsense, tão inglês.
Porque a Inglaterra tem tanto talento para o humor ? Apenas o humor judaico lhe faz frente. O que aconteceu para que houvesse esse desabrochar de riso, de escárnio e principalmente, de absurdo cômico ?
A introdução do livro, de Rosalia Garcia, arrisca dizer : o humor nasce como válvula de escape da rigidez da rotina inglesa. O inglês rí, faz trocadilhos, cria absurdos para quebrar o gesso dos horários rígidos, do chá com leite, da etiqueta formal, do sempre igual. Numa nação de guarda-chuvas pretos, carros pretos, guardas da rainha em formação e classes que não se misturam, criar o absurdo para quebrar a chatice é não só necessário, é vital. Saki faz isso todo o tempo. Fala de chás que dão errado, de caçadas desastradas, de festas que afundam, de nobres ridiculos. O inglês acima de tudo rí de sí mesmo e, apesar de se saber absurdo, ama seu modo ridiculo de ser. Seu humor não é feito para gargalhar, ele é feito para mover o cérebro, arejar o pensamento, pintar o guarda-chuva de rosa e o Rolls de amarelo.
Duas velhinhas tomam chá. Mas Jacques Cousteau, vestido com escafandro, toma chá com elas e tem um peixe na mão. O teto cai e um pianista toca no quarto ao lado. O pianista está pelado. Um repórter pergunta na rua porque os escoceses usam saiote e um homem de saiote é morto numa rua. Isto é nonsense. É produto que só existe na terra de Peter Sellers, de Kevin Ayers, de Alice no país do espelho, do Monty Python e deste Saki, que tanto faz rir fazendo tão pouco.
O humor francês, apesar de Tati, é tão fraco por ser um país que se leva demais a sério. A Itália é cômica por saber ser ridícula. A América tem o humor do judeu e do negro, um humor feito para se vencer a opressão. Se rí da dor para se superar a ferida. Mas o inglês cria o anti-esperado, o anti-real, o anti-relógio. Ele se mantém britânico, se mantém súdito da rainha; porém cria um momento de exagero, de absoluto absurdo, de transe de sem sentido, de humor inglês. É genial. È Evelyn Waugh, é P.G. Wodehouse, e é Saki.
Por ser tão formal e reprimido, eu o entendo, o pratico em minha vida e o idolatro. A vida é nonsense e só quem foi obrigado a ser cego e de súbito abre os olhos percebe a graça.
Viva Saki !