MANDA PRA DEBAIXO DO TAPETE

A ciência nos deu a cura de algumas doenças e remédios pra deprê. Carros e aviões. Mas não nos deu uma forma de lidar com casamentos, amizades, pais e enterros. E é nessa hora, a hora da verdade, que a gente percebe que fomos roubados.
Isabel era minha prima. Mesma idade, a gente cresceu brincando. Ela falava baixo, era vaidosa, boa gente, cheia de amigos. Adorava os pais.
Sexta de noite, voltando do teatro, Isabel levou um tiro no peito. Metade do corpo se esparramou pelo carro. Os assassinos, de moto, se foram... Isabel deixou dois pais. E um lugar vazio.
O corpo, recomposto e maquiado, foi enterrado. E o que é um enterro? Um monte de gente triste, sem saber o que fazer, o que sentir, o que falar. O corpo baixa à terra em meio aos coveiros, e todos ficam aturdidos como bichos que nada entendem. E eu, que em nada creio, penso, cheio de ódio, naquilo que a tal modernidade nos tirou. Roubou de nossa vida o velório em igreja, o padre consolador, o ritual do enterro. Qualquer tribo primitiva sabe como lidar com isso, nós, modernos, não. Assim como não sabemos lidar com nada que realmente importa. Tudo é varrido para debaixo do tapete, para o inconsciente. Afinal, o que nos pedem é seguir em frente, sempre. ( O melhor é continuar a trabalhar!!!! )
Onde a transcendencia? Onde o luto profundo e reparador? Onde a dor da tragédia e a catarse? Tudo o que nos oferecem são flores e trabalho, a vida que segue, um antideprê e uma terapiazinha... e todo o significado da morte e da vida passa a ser não entendido. Nos tornamos menos que bichos, somos um conjunto de células, nosso sentimento e nossa dor é quimica, nada mais que quimica. Óxidos e nitratos que pensam.
É tudo uma merda, uma imensa merda. Sabemos tudo e nada sabemos na hora em que o negócio fica sério. Os pais, desamparados, pessoas da época romântica jogados na era do trabalho, ficam lá, ao lado da cova, agradecendo a quem compareceu ( muitos ) e em desamparo completo. Onde o chefe da taba? Onde o xamã? Onde o consolo que consola? Nada, absolutamente nada. Tudo trancafiado no inconsciente, afinal, toda essa vida religiosa/simbólica apenas atrapalha a caminhada rumo ao futuro/trabalho.
Eu sinto ódio. Muito ódio. A velha Bíblia estava certa, olho por olho. Não me venham com "vejamos", "por outro lado", "a sociedade"; morte se paga com morte, os dois covardes devem pagar, ser enforcados na minha frente, assados em fogo brando. Eles devem pedir perdão de joelhos e serem executados com risos e festa. Te deixo chocado? Falo aquilo que voce não tem coragem de dizer. Aquilo que foi trancafiado no seu cérebro, lá no escuro, junto com sonhos de familia feliz, desejos de liberdade e fé na vida. Os dois foram ruins, e creia, a maldade é incurável e imperdoável. O relativismo da ciência nos roubou também essa certeza.
Uma menina senta-se ao meu lado no velório. Vestido longo, cabelo com tiara, voz fininha. Talvez 7 anos. Ela é exatamente como Isabel foi um dia. Ela precisa ser protegida. Ela precisa ter um final mais digno. Ela é o único sentido que nos resta. A continuação da história.
Minha mãe pega meu braço. O pai de Isabel não quer sair do lado da filha. O céu está azul. Um pássaro passa voando. Algumas pessoas estão no túmulo de Senna.
Se Deus não existe e nunca existiu, eu o invento. Se os anjos fugiram da Terra com desgosto, eu falarei com eles. Se a alma é apenas o sonho de alguém que pensa demais, eu pensarei muito. O vale da morte, a dor de um pai, a saudade de um amigo... apenas isso importa.