A MORTE ( DE UMA PALESTRA DE SCARLET MARTON )

Quando eu fui pagão.
Enterrava meu morto ( e ele era meu, e a morte era minha ) em casa. Ele ficava habitando meu jardim e fertilizava minha vida vegetal. Seu espírito intercederia por mim e era ele quem faria minha rosa florir. E eu sabia que iria morrer sob céu e sobre terra e saberia fazer vicejar o verde das folhas e sabia que a morte é a parte principal da vida. Pois nesse universo primitivo tudo é morte: cada estrela e cada pedra é morta, todo presságio a anuncia. Toda casa tem seu túmulo e seu altar, todo jardim guarda um espirito. A morte regendo a vida, a morte sendo presente, a morte como parte de vida.
Quando me tornei cristão. Passei a crer apenas na vida. A morte tornou-se maldita. Sagrada é a vida, dada por Deus, a morte é incompreensível. E detestável. A vida continua como ressurreição, a morte deve ser vencida. Cemitérios para depositar corpos, corpos que contém alma, corpos que se erguerão, um dia. A morte deve ser banida.
Quando me fiz moderno. Lugares para morrer, de preferencia dormindo. Não posso encarar minha morte, que ela venha em sono de ópio ou em susto de acidente. Que o luto se faça por um dia em capela distante e que o resto seja depositado entre restos. Longe de mim a morte. Que ela se torne espetáculo ficcional, que se torne explosão, malabarismo, show de cores, mas que eu me esqueça de sua realidade. Passo a acreditar que toda morte é não-natural, que morrer é sempre um acidente, um erro médico, um cigarro a mais, uma alimentação errada. Esqueço que morrer é natural, corriqueiro, banal.
Ouço então que Pascal pensava exatamente o que sempre pensei: que toda a história da cultura é uma tentativa de se distrair da morte. O homem culto, racional, tem na morte algo de insuportável. Um intelecto desenvolvido não suporta a idéia do inevitável, do além de sua compreensão. Então ele foge dessa lembrança. E cada vez mais se entrega a distração. Teatro, ritual, livros, passeios, filmes, sexo, romance, drogas, disputas, consumo, virtualidades. Nos distraimos olhando estrelas ( que são mortas ), vendo espetáculos ( de autores mortos ), filosofando ( sobre idéias mortais ). Tentamos acreditar em religiões que consolam. Mas no íntimo todos sabemos: tudo isso nada significa diante da morte. Mas....
Porque o homem é o único bicho a saber de seu fim? Porque mesmo sabendo que tudo morre persistimos? Porque pensar na morte é viver? Memento mori.
Sempre tenho em mim a heróica imagem de um homem primitivo olhando para seu filho morto e pensando aturdido : Porque? Porque? Porque?
Não é a escrita ou a descoberta do fogo que fez de nós macacos mais evoluídos. Foi a consciencia do fim que nos fez humanos. O tentar preservar a memória dos que morreram, o tentar esquecer o próprio fim, o se proteger desse fim. Ser humano é saber-se finito.
Mas existe o risco da desumanização. Que seria ignorar a morte. Não mais preservar memórias, ignorar completamente a própria finitude e principalmente, deixar de respeitar e temer a morte. Em mundo sem a presença da morte seria o homem apenas um produtor de eternos presentes, sem qualquer compromisso com futuro ou responsabilidade por um passado. Insetos.
Quando morrer eu existirei como cinza. Misturarei meu pó ao pó de onde todos vieram. E estarei na situação de todos aqueles que vieram antes de mim. Serei mais um e perderei enfim a arrogancia de ser único. Meu pó será como é e sempre foi e sempre será o universo: para sempre.
Os pagãos sabiam disso. Morrer, para eles, era retornar a Terra. Voltar ao ciclo da natureza. Tornar-se solo. Humus- Humano. Ser um homem era saber morrer. Viver era preparar-se para morrer. E saber disso era aproveitar seu tempo aqui e agora. Carpe diem.
Não quero dizendo isso advogar o luto antecipado ou a morbidez fatalista. O que penso é que precisamos nos apequenar diante do inevitável, adquirir uma noção de importância perante o inevitável, entender que todos estamos nesse caminho.
Saber que na vida só existem dois momentos de súbita e completa clareza ( e que são os momentos onde cessa o tempo ): o momento do amor verdadeiro e o momento da morte. Todo o resto é preparação para amar e morrer ( em seu melhor ) ou covarde negação dessa prova de vida ( em seu pior ). Como dizia Montaigne, filosofar é aprender a morrer.