DE CEMITÉRIO E DE MARCHINHAS

   As casas da rua continuam à venda. Ninguém quer morar nelas, ou o preço pode ser muito alto. O sol me faz suar e encontro meu amigo Julio que me espera em seu carro. O carro tem uma porta quebrada. A tranca não tranca. Ele dirige e as ruas parecem menos vazias do que eu esperava. É carnaval hoje. Segunda feira.
 O carro acha uma vaga. Os túmulos se amontoam no velho cemitério.
 - Você tem medo...eu não. Sabe, eu sou um ex ateu...tive umas coisas que me aconteceram...
 O velório fica no alto de uma ladeira. Logo na entrada vejo um cara conversando que me recorda, em sua aparência despreocupada, alguém que conheci muito tempo atrás. É Ricardinho. o irmão de Romeu, que é o cara com quem ele conversava. São dois irmãos que conheci nos anos 80 e que não vejo desde...1992...Caramba...
 Abraços e eles lembram de mim, o que me surpreende. Ricardinho não mudou nada. Romeu engordou, e como eu sempre adivinhei, continua solteiro. Tempos de hoje, somos quatro velhos amigos de 50 anos, três nunca se casaram. E aquele que nos uniu hoje, Giba, também morreu só, sem esposa, sem filhos, numa praia de Floripa.
 O caixão repousa entre flores. Talvez eu esteja acostumado aos enterros portugueses, não sei, mas eu estranho a ausência de lágrimas. Cerca de 40 pessoas estão ali, de pé, olhando o véu que cobre meu amigo. Não há crianças. Nenhuma.
 Giba foi capoeirista. E por isso um mestre de capoeira faz um discurso. Lembro então de como ele era quieto. Conhecia as pessoas sem fazer questão de as conhecer e ficava com as meninas sem nunca se apaixonar. Parecia um cara natural. simples, fácil de conviver, mas tinha terríveis acessos de teimosia. E brigava bem. Era alto.
 Quando o conheci ele tinha 15 anos. Eu tinha 18. Gostei dele de primeira. Era um cara que representava o melhor de então, dos anos 80-82. Um pé no take it easy hippie. E outro na vida louca dos anos que viriam. Pó. Onda. Estrada.
 Andamos atrás do caixão entre túmulos. Ricardinho reclama do absurdo daqueles túmulos que ostentam tanto. Muito melhor ser cremado. Eu peço para eles não se esquecerem meu desejo: ser cremado. E que minhas cinzas sejam adubo para uma mangueira. O caixão desce e o mestre canta capoeira. Batem palmas. Romeu fala em cerveja.
 Eu e Julio discutimos se a pessoa escolhe sua vida ou se ela é vítima daquilo que a vida faz. Giba viveu só. Sempre só. Numa praia. E morreu só. As pessoas, poucas, iam o visitar, mas ele era um homem quieto. E morreu cedo.
 A cerveja tem pedaços de gelo. Desce arranhando. Romeu continua o mesmo. Carros, motos, bebidas e um silêncio grande. No bar de esquina, cheio de gente que ele conhece, Julio lembra de uma música de sucesso dos anos 70. Uma canção que hoje seria proibida: "Te carreguei no colo menina, Cantei pra ti dormir"...
 Sinto que estou dentro de um sonho. Que o tempo não existe. Que estamos onde sempre estivemos. Mas Giba partiu e eu li as datas dos túmulos. Há quem tenha morrido em 1910.
 Passa um bloco de carnaval na rua. Cantando "Ó jardineira por que estás tão triste..." Garotos vestidos de panos brancos. E muitas meninas de shorts e garrafas na mão. Olho seus rostos e observo que nada há de alegre neles. Ou talvez eu não seja alegre. As meninas olham o vazio enquanto marcham atrás do som. Os meninos ficam bêbados. Um bando de coroas na mesa de um bar, nós, as assustamos com nosso olhar de lobo mal.
 O tempo passou meus amigos. Hoje achamos que todos os caras são viados e todas as meninas são mal amadas. O mesmo que nossos pais diziam e pensavam. E enterramos nossos amigos.
 Não sei se os melhores morrem primeiro. Os mais puros sim.
 As últimas meninas passam com suas bundinhas redondas em shorts brancos pouco sexy. O novo gole me parece ruim. Me levanto. Abraço Romeu e vou embora com Julio. Ele vai lançar seu segundo livro e um filme está sendo feito do primeiro. O sol lança tudo sobre a gente.
 O sol, ele é sempre o mesmo.