A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER - MILAN KUNDERA
Best Seller surpreendente nos anos de 1980, releio o romance mais famoso do autor tcheco e levo um choque: ele é muito mais SÁBIO do que eu lembrava. Constatação: vivemos um dos séculos mais idiotas da história e Kundera parece hoje muito melhor que em 1984. Frases e mais frases, afirmações e afirmações que ficaram fixadas na minha mente. É um dos livros que me formou e talvez seja até mesmo um dos cinco que mais me influenciou. ----------------- O eterno retorno, o tempo circular, as mulheres e seus medos, a vida dos bichos, o amor não assumido, são montanhas de frases que cito e recordo desde então e que eu já não lembrava ter lido neste livro. Kundera é um autor ao estilo de Voltaire, ele narra para ensinar, ele conta uma história para citar frases de sabedoria. Ele usa personagens para nos fazer testemunhar a história de um país humilhado. ---------------- Ler este romance, em momento que tanta gente em meu país é perseguida por não pensar "democraticamente" ( modo hipócrita de se nomear o modo dominante permitido de pensar ), me causa arrepios. Thomas, o médico do romance, é obrigado pelas autoridades a largar sua profissão e sua cidade e se tornar um agricultor. Aqui vejo pessoas sendo obrigadas a desaparecer, se afastarem, partirem para o ostracismo. O que se faz hoje em redes sociais é aquilo que se fazia na Tchecoslováquia em 1968. A diferença é que lá era feito na rua e no trabalho, aqui é feito em um clic. Mel Gibson, Ted Nugent, Donald Trump, estão na mesma situação de Thomas: para o poder dominante e para a história oficial eles não mais existem ( há muitos mais ). -------------- Teresa se adapta, Thomas não. Ele diz ter sido feliz com a vida que viveu, mas sabemos ser mentira. Pode ser uma visão só minha, mas o amor dos dois não me convence. Eles são desesperados e o apego dos dois é como um salva vidas. Ela o agarra e ele vê nela alguém a ser cuidado. Depois a coisa se inverte. Mas eles nunca parecem realmente unidos. O filme, que é ótimo, deixa isso mais claro. O amor dos dois encontra a paz minutos antes do acidente que os matará. ------------ Ou talvez, no momento histórico em que eles vivem, o amor não pode e não deve se fazer consciente. --------- Kundera tem uma escrita que sempre me parece árida, distante, é um prosador controlado. Desse modo, os personagens sofrem uma ausência de espontaniedade. São como bonecos a espera de um despertar. Servem para exemplificar aquilo que o autor quer nos demonstrar. Paulo Francis dizia que Kubrick fazia filmes que pareciam coisa de professor de filosofia alemão. Kundera é o equivalente em literatura. ------------- Mas é um bom professor. Ele tem o que falar. É sério sem ser desesperado e terminal ( como é todo autor sério de 2023 ), sofre mas não demonstra, e está longe de ser niilista. Kundera ainda crê no amor e por isso parece digno, nobre, ereto em sua posição. Houellebecq, autor que admiro, perto dele parece estranhamente inumano, tomado por emoções que não são aquelas que nos fizeram evoluir como espécie. Já Kundera, nascido em 1929, ainda podia acreditar na verdadeira democracia, no tempo, na carne de uma mulher, na doce vida de um cão. Apesar da Guerra, apesar da invasão, apesar do cancelamento, ele sabia que valia a pena. -------------- Na pós literatura do pós humanismo do pós científico mundo de agora, não se discute se vale a pena. Não se discute nada. Se crê. Naquilo que não se deve ver.