SOBRE OS SONHOS E OUTROS DIÁLOGOS, CONVERSAS ENTRE BORGES E OSVALDO FERRARI

   Em 1985, um ano antes de sua morte, Jorge Luis Borges teve veiculadas por rádio, uma série de conversas com o jornalista e escritor Osvaldo Ferrari. O gênio argentino fala sobre sonhos, religião, filosofia, tempo, Europa, liberdade... e sobre seus autores favoritos, Melville, Conrad, Henry James, Cervantes, Stevenson, Kafka, e sobretudo Dante. Borges se mostra bem-humorado, modesto, prolixo e sempre interessante. O que eu posso destacar dessas duzentas e poucas páginas tão prazerosas?
   Um fato que salta a nossa mente: a América como terra de europeus exilados. Seríamos mais europeus que os europeus, pois estando longe da Europa, podemos ser toda a Europa e ver sua verdade inteira. Um alemão na Alemanha é um alemão. Um francês é um francês, mas um americano pode ser alemão e francês, grego, italiano e romeno. Mais ainda, a América pode ser Europa e Oriente, temos aqui a chance de unir toda a história, Homero e Velho Testamento.
   O livro é todo feito desses pensamentos. Outro? Quando sonhamos criamos. Somos autor e ator, cenógrafo e diretor, e público também. Sonhando todo homem é um artista.
   Mais sobre o sonho: Yeats dizia que quando sonhamos rememoramos todo nosso passado. E nosso passado é o passado de nossos pais. E de nossos avôs. E dos bisavôs. Sonhando estamos revendo toda a história de nosso mundo. O poeta é o homem que cava esse passado.
    Mas o passado é livre. Nós criamos um passado. Podemos aumentar, encolher, esticar, embelezar, esquecer. Assim como o futuro, o passado pode ser moldado por nós. O presente existe? Se existe ele nos escapa.
    Fato notório: Todo povo primitivo fala em forma de poesia. E toda literatura nasce como poema. A prosa é mais dificil, mais sofisticada. Existem civilizações que nada produziram em prosa. Nosso passado fala em forma poética. Nossos sonhos são poemas. Nosso espirito é uma fala de um poeta.
    Clássico é todo livro que não necessita mais de materialidade para existir. Se todos os livros de Dom Quixote fossem queimados, mesmo assim os homens continuariam a falar em Quixote e Sancho e criariam um novo livro de memória. O mesmo com Hamlet, Dante ou Homero. Eles já existem no mundo, não vivem apenas nas páginas.  Se tornaram habitantes da história.
   Duas palavras se perderam no mundo moderno: amor e beleza. Escrever por amor? Quem ainda? O amor foi esmigalhado, vulgarizado, estudado, vilipendiado. O mesmo com a beleza. A pergunta estúpida: Para que serve a poesia? O que é o amor? Qual a função da beleza? A resposta de Borges: Para que serve uma montanha? O que é a vida? Qual a função de uma galáxia? A mania moderna dos porques e paraques remete a perguntas de crianças que acabaram de aprender a falar.
   Criar é lembrar. O artista recorda.
   A felicidade é um fim em si-mesma. Ela nada cria. É a tristeza que cria beleza. Ela é um caminho, uma incompletude. Deus criou a infelicidade para nos dar o que narrar.
   ....aí estão amostras do que o livro/conversa diz. O papo vai fluindo, em gotas, em xícaras. E voce vai sorvendo com prazer, com gosto.
   Borges é um autor que conheci tarde, com mais de 35 anos. O Aleph foi o primeiro. E que alegria!!! A criatividade nos dá uma felicidade imensa, a alegria de testemunhar uma vitória, a conquista da vida sobre a dor, da luz sobre o tédio, do espirito sobre o nada. A criação é o dom soberano. Borges é um de seus apóstolos.