ENSAIOS CÉTICOS - BERTRAND RUSSELL

   Leio este volume de vários ensaios de Russell. Editado em 1928, é um apanhado não especificamente da filosofia desse homem admirável, mas sim o modo como ele via a política, a história e a crença dos homens. Russell não é do meu time, digamos assim. Ele era inimigo de Chesterton, de Tolkien e de Lewis. Mas lê-lo faz bem a todos que amam a inteligência. Russell foi uma das figuras centrais da cultura inglesa no século XX. Em sua longa existência, 1872- 1968, ele sempre foi atuante, um homem de ação. Aos quase cem anos de idade, ainda frequentava passeatas em Londres em pró do pacifismo. Tornou-se famoso no fim do século XIX, como lógico e matemático, e depois, já no século seguinte, como socialista light e pacifista hard. Foi professor de Wittgeinstein em Cambridge ( é Russell quem diz que Witt era "um gênio ou um completo idiota" ). Seu modo de pensar é científico. Ou seja, tudo aquilo que não pode ser provado deve ser visto com absoluto ceticismo. Seja política, psicologia, história ou costumes, só é verdade o que pode ser 100% conferido. Russell nos convida a duvidar de tudo. Mas sem pessimismo, de modo positivo.
  Esse modo de pensar é de absoluta urgência neste 2020. Russell teria muito o que dizer contra a persistência de nossas superstições. Seja ela crer em um pedaço de pano na boca como garantia de saúde, seja crer num mapa astrológico como indicador de talentos. O ceticismo não deve poupar nada. O paninho não garante cientificamente nada, o mapa astral idem. Não há distinção. 60% ou 1% de possiblidade, tanto faz. Ciência é verdade absoluta, ou apenas hipótese. Para Russell é a crença o maior inimigo do homem. Cremos que nossos inimigos são ruins, para assim termos o prazer de nos sentirmos bons. Não há evidência alguma em que nosso lado é o certo, mas, desejosos de bondade, de absolvição, desejosos de crença, nos convencemos que eles são o mal, nós somos o bem. Conclusão? Ódio. Guerra. Dissolução. Apesar de socialista, Russell percebia na teoria de Marx um tipo de igreja do ódio. Ela prometia o céu futuro, e para isso unia seus fieis no ódio à classe média. Marxismo sem ódio é inconcebível. Bolcheviques, crentes em sua boa intenção, comungam no rancor mortal ao inimigo. Sem esse combustível a coisa se desfaz. O Capital é um manual de guerra. Frase de Russell.
  No capitalismo ele sentia a mesma fé cega. Mas, invés de voltado ao ódio ao inimigo, voltado ao individualismo competitivo. Eu creio que irei vencer. E quem concorre comigo irá perder. Nesses seus escritos, era 1928, vinte anos antes da guerra fria, Russell já previa o choque entre os gigantes. URSS e USA tendiam a dividir o mundo em dois. Um lado oprimido por um partido e uma burocracia infinita, o outro lado oprimido por meia dúzia de empresas e uma sede infindável por progresso. Ele previa que o único modo dos USA perderem seria se o nível financeiro médio de seu operário ficasse abaixo do soviético. Já a URSS cairia se o estado perdesse sua auto confiança e seu poder de esmagar vozes dissidentes.
  Falemos agora de filosofia pura. Na verdade, a melhor parte do volume.
  Russell, como eu já sabia, considera Bergson um mero "poeta" e nunca um filósofo. Diz ele que Bergson faz apenas propaganda, não tenta provar nada. Que na verdade tudo que o francês fala é aquilo que seu leitor quer crer que seja verdade. Como exemplo ele cita a memória.
  Bergson diz que a memória jamais morre. Que aquilo que vivemos permanece vivo em nossa vida. Para Bergson não é apenas uma questão de recordar, é muito mais que isso, o que vivemos, 100% do que vivemos, permanece tão vivo e forte como no momento em que foi vivido pela primeira vez. Russell discorda radicalmente. Para ele, lembrar uma viagem à China é apenas rever uma série de imagens embaçadas. Por mais que algumas dessas fotos nos emocionem, essa emoção é saudade, nostalgia. No tempo que decorreu entre o fato acontecido e a lembrança tudo mudou. Nossas memórias são objetos desgastados pela nossa vivência.
  Concordando ou não, é fascinante o modo como Russell enfrenta a tese. Sua abordagem é sempre a da ciência. E ele vive a repetir que, como inglês, vê tudo de um ponto de vista apaziguador. Sem paixão.
  Sobre as máquinas, tem Russell uma opinião límpida: sem o trabalho braçal ficamos à mercê de qualquer líder que canalize nossa energia frustrada. Uma pessoa que não se cansa fisicamente é uma pessoa com superávit de energia. Se não houver uma educação para o esporte ou para o uso dessa força, a represa arrebenta. A anarquia e a destruição são as válvulas de escape de jovens que não precisam mais se destruir no trabalho ( o que é ótimo ), mas não sabem o que fazer com o misto de ansiedade, energia não gasta e tempo livre ao seu dispor. Russell teria muito o que dizer sobre nosso mundo. Não é mais o da máquina. É o da virtualidade. Não vemos mais, como ele aponta em 1928, a vida como mecanismo. Vemos a vida como programa, sistema, rede.
  Ao final da obra Russell se arrisca a fazer algum futurismo. Acerta ao prever que no futuro as pessoas irão ler cada vez menos, receberão informação de canais os mais diversos e serão facilmente formadas pela propaganda. A ditadura de meia dúzia de veículos tende a cair por terra, mas por outro lado, slogans e frases de efeito terão poder como jamais visto.
  Russell defende bastante Freud, William James e Einstein. Diz que a psicanálise tem potencial para mudar todo o mundo ( ela mudou ), e que Einstein revolucionou nossa maneira de pensar. Quanto à James, ele criou o pragmatismo radical, aquele que fala que a verdade é o que funciona, credo de todo o mundo desenvolvido. O ser deseja crer e assim ele crê naquilo que dá certo. O que dá certo será então a verdade. Eis aí, em William James, toda a filosofia que construiu os EUA. Eu quero crer, escolho crer na democracia. A democracia é os EUA. Os EUA vencem todas as guerras. Os EUA vencem a Europa no comércio e na indústria. Logo, a democracia é a verdade. ( Observe como bastou uma única derrota, Vietnã em 1972, para essa crença começar a ruir ).
  Eu não penso como Russell, mas eu gosto de ler Russell.
  Eis um ato democrático, tão fora de moda hoje.
  Se eu fosse dar um nome à nossa cultura atual a chamaria de cultura do self, do espelho, do palanque. Narcisismo levado ao paradoxo. Somos autores, atores e público de nós mesmos. Fechamos nosso teatro àqueles que não são de nossa tribo. E ao mesmo tempo sofremos da nostalgia de algo que se perdeu e não tem nome. Russell chamaria de saudade da razão. E é essa a delícia de o ler. Relembrar o que significa razão.