PELOS CAMINHOS DO INFERNO. AUSTRÁLIA.

Leio nos extras que este é o filme favorito de Nick Cave. Diz ele que não existe filme que mostre melhor o que é a Australia. Assisto-o então. Veio num box com mais dois filmes do movimento de renovação do cinema do país, ocorrido na década de 70. Estranho observar que na época essa onda passou despercebida aqui no Brasil. Nos anos 70 se falava em nossos jornais do novo cinema alemão, do australiano, nada. O cinema do país só entrou em nosso mapa nos anos 80 com Weir, Miller, Armstrong, Franklin. ------------------------------------ PELOS CAMINHOS DO INFERNO é de 1970. Ted Kotcheff, seu diretor, era canadense. Fez este filme na Australia com toda produção do país. Passou em Cannes, e desde então se tornou cult. Claro que Scorsese o conhece e chama-o de filme forte. Eu o achei estranho, esquisito, assustador...exatamente como a Australia é. -------------------------------------- Nick Cave adora o filme porque ele é uma aventura mas é também aula de sociologia. A história é simples: numa cidade minúscula, no meio do deserto, um professor sai de férias. Pensa em ir para Sidney. No caminho para em outra cidade, se envolve com jogo e bebida e entra num pesadelo sem fim. O filme é bonito porém terrível, interessante e desagradável, original e pop. Australiano até o osso. Em todas as cenas a gente acha que vai ver os caras do ACDC em algum canto. ( Em tempo: ele não é rocknroll....ele é gótico ). --------------------------------- Quando aconteceu a Olimpíada em Sidney, vários jornalistas ficaram encantados com a filosofia australiana de "mate". Mate é a palavra para amigo, colega, gente boa, parça. Diziam eles que qualquer desconhecido te chama de Mate, te chama para uma cerveja, te recebe e te ajuda. O filme é sobre isso. Mas essa coisa, o tal MATE, é visto aqui de dentro. E o que surge é a maldição de viver num lugar onde voce é obrigado a ser "um mate", um colega. Em cada buraco que o professor entra ele topa com um mate. Então, para seguir o costume, ele tem de se abrir, beber junto, jogar junto, caçar junto, e no processo ele se perde. Quando tenta recusar um novo mate vem a bronca. "Voce não vai beber da minha cerveja?"...e então ele cede. ---------------------------------- Tenho um amigo que mora lá desde 1999. Ele ama o país. Mas veja o que ele virou: bigode imenso, cabeça raspada, vive o tempo todo percorrendo o deserto em ralis de moto. ------------------------ Bebem demais no filme. Apenas cerveja. Mas litros e litros o tempo todo. Os lugares têm pó, moscas, são muito, muito quentes, e 99.9999% são homens. Eles jogam, apostam, bronqueiam, riem, mas não brigam. E bebem. Bebem. Bebem. E prezam acima de tudo a amizade masculina. Por que esse país é assim? -------------------------------------- A Australia joga por terra a tese, ridicula, de que o Brasil não deu certo por ser terra de degradados. De que para cá só vinha a escória de Portugal. Pois na Australia não ia apenas a escória, iam aqueles que escolhiam a imigração em lugar da forca. E creia, muitos preferiam a forca. ----------------------------------------- A Australia, em 1800, 1850, era o inferno. Quente, cheia de bichos esquisitos, as piores cobras e aranhas, selvagens ferozes, doenças, e era longe, além do fim do mundo. Tinha lepra, tinha febre, tinha o mal. Chegando lá, esses seres, assassinos, estupradores, loucos, maníacos, tinham de se unir para tentar sobreviver. Nascia o coneceito de mate. Eu posso não ir com sua cara, posso até mesmo te odiar, mas estamos juntos neste inferno, nesta sela, nesta prisão. Voce é meu mate. Meu camarada. Parceiro de solidão. -------------------------- Observe as diferenças: nos desertos dos USA seus moradores são desconfiados, unidos apenas na família, resistentes aos forasteiros. A raiz deles é a do pioneiro. Do cara qe foi pro Arizona porque quis. Tomou posse. Se fez. Esta terra é minha. Na Australia não. Esta terra não é minha e nem mesmo de Deus. Esta terra é dos outros. De todo esquisito que aqui vier. Esta terra nos vence. É livre e indomável. ------------------------------- Falar da diferença da Australia e do Brasil é simples. Os primeiros moradores de lá estavam condenados a morrer lá. Ou se uniam ou afundavam. Aqui todo colono estava de passagem. Ele poderia vir a morrer aqui, mas seu objetivo era retornar. Chegar aqui, pegar o que puder e partir. ------------------------- A atitude do australiano era a de esquecer logo a Inglaterra. Ela jamais seria vista outra vez. A do colono brasileiro era oposta: ignorar o Brasil e ter sempre em mente Portugal. Esperar pelo retorno. --------------------------- Em 2021 não à toa temos a Australia como o país do mundo que menos envia imigrantes para fora. Nem os USA têm tão pouca gente que sai do país para viver fora. Já no Brasil, nossa população não imigra apenas por não ter como partir. Se nosso povo tivesse dinheiro para isso, 40% iria embora. Aqui é posto transitório. ----------------------------- O filme é bom? O que voce acha?