ISAIAH BERLIN FALA SOBRE EU E SOBRE VOCÊ.

   Berlin é um dos mais respeitados intelectuais do século XX e deveria ser mais lido no XXI. Aqui ele fala da mais assombrosa mudança mental que o ser humano viveu: aquela que ocorreu entre os séculos XVIII e XIX. Vamos tentar explicar a meu modo...
   Para ele, o mundo ocidental sofre três grandes mudanças em seu modo de pensar e de ver a vida. A primeira aconteceu logo ao fim da vida de Aristóteles. Até então, todo o pensamento era visto como algo a ser feito em grupo. Não se analisava o homem como um ser individual, mas sim como um ser dentro de um grupo social. Filósofos como Platão falam da coletividade, do todo, nunca do indivíduo. Mas, de repente, em meros 20 anos, surgem filósofos que analisam o homem como universo separado, como indivíduo, como ser a separado um do outro.
  A segunda grande mudança vem na Renascença, quando o natural se separa do moral. A moral, a ética, o bem, deixa de ser um valor natural e passa a ser questão de escolha, de trabalho, de educação e esforço.
 O terceiro, nossa mudança, pois dura até hoje, 2017, é aquela que se inicia com o romantismo.
 A virtude, o bem e a verdade, sempre foram, por 5000 anos, vistos como o final da vida humana na Terra. A verdade existia como algo dado, bastava ao homem conseguir descobrir onde ela se encontrava. A religião, a ciência e a arte eram modos de se encontrar no mundo, no cosmos, essa verdade. E também a beleza, a ética, o sentido de tudo. A vida real estava então FORA DO HOMEM. Pois bem, Berlin explica, e eu me abstenho de transcrever aqui, o movimento mental e espiritual, o porque dos românticos terem criado uma nova verdade, aquela que diz que TODA VERDADE VIVE DENTRO DE CADA UM. Consequência imediata, se a verdade não está lá fora, então ela é relativa, cada um tem uma verdade particular, única, que independe do todo. Caminhando mais um pouco, vemos que o mundo lá fora perde valor, se torna sem verdade por si mesmo, sem sentido, apenas um tipo de cenário louco.
  O romântico criou a ideia de que para uma vida valer a pena é preciso criar sua verdade, e ao mesmo tempo criar sua vida, ou seja, só o CRIADOR vive. O artista é o objetivo de todos, o SER superior é um artista. Veja, não um pintor ou um poeta, mas sim alguém que cria um modo de viver e de ser ÚNICO. Viver deixa de ser sobreviver ou cuidar ou lutar; se torna inventar.
  O artista cria a partir do nada, cria dentro de si, o artista é LIVRE. Ele pensa, faz e acredita naquilo que sua liberdade quer. O homem se torna um ser que quer ser livre, livre para poder criar a si mesmo. E para ser livre, seu caminho se faz, logicamente, o do autodomínio. A dor, a idade, as emoções nos lembram que não somos livres. Então, passamos a vida negando a dor, negando o tempo, negando as emoções. Criamos uma liberdade que aprisiona, porque somos carcereiros do que a coloca em perigo. Vigilantes do nosso ser natural. Passamos a controlar a natureza, inimiga natural da liberdade.
  Se antes a verdade estava lá fora, onde viveria Deus, a verdade, o sentido; agora Deus, a verdade e o sentido passa a ser uma questão de inventar e não mais de descobrir.
  OS VALORES DEIXAM DE SER DESCOBERTAS. PASSAM A SER INVENÇÃO.
  Hoje vivemos a guerra entre esses dois mundos: razão X liberdade.
  A razão não é liberdade, a liberdade despreza a lógica. Pois a lógica é um valor que é o que é, independente do que eu queira ou deseje crer. Por isso a razão não pensa em termos e liberdade, ela pensa em termos de causas e consequências. A razão é sempre um bem comum, geral, não individual. Ela vive fora do querer ou do ser humanos. Ela está no universo. Pela razão pode se viver me paz, e só por ela, exatamente porque ela nega a individualidade e pensa em termos gerais.
  A liberdade abomina a razão porque ela lhe lembra do fim das coisas, dos limites do corpo e das obrigações para com os outros e o mundo. É a liberdade, o desejo por querer ser livre, que leva às guerras, às injustiças, à destruição. Esse impulso, romântico, leva a destruição de tudo o que signifique limite, dever, senso comum.
  Nada é mais odioso ao artista que o senso comum, ser mais um em meio ao todo.
  Nessa atividade criativa, nessa incessante ação original, ousada, construtiva, não há mais espaço para o ócio e para o vazio. Viver é criar, viver é fazer e deixar uma marca. Nada mais odioso que o fazer nada, pensar a toa, viver sem deixar nada em sua passagem. Esse o mundo criado pela geração de Beethoven, Wagner, Goethe e Heine, a vida como luta incessante CONTRA A VIDA REAL, A VIDA LIMITADA.
  O lema iluminista, anterior ao romantismo portanto, é: SABER PRIMEIRO, DEPOIS FAZER. O lema romântico, nosso lema até hoje, é: FAZER É SABER, ou seja, aprendemos fazendo, e assim, não nos preparamos para viver. Se antes ser um Homem era saber e pensar, agora ser Homem é fazer e agir. Fazer em impulso, não se omitir, tentar, mesmo que esse tentar seja um vexame, um desastre ou uma tragédia.
  O passo último seria criar um outro mundo, um mundo onde TUDO fosse uma criação livre, sem a natureza, sem o "de fora", sem nenhuma força que não possa ser domada e sem NADA DE EXTERIOR. Do Marxismo às teorias de Freud, em todas vem a crença de que o Homem cria aquilo que ele é, de que a verdade se encontra dentro dele e só dentro dele, de que o Homem é o senhor da vida e único responsável por seu destino. Mesmo que histórico ou inconsciente, tudo é humano, tudo é do homem.
  Observa a guerra religiosa e hoje. Ela seria incompreensível para um europeu de 1700.
  Antes, um homem sabia que sua fé era a verdadeira por ser a fé de todos aqueles que viveram antes dele. Ele lamentava o islamita ou o judeu por serem enganados por uma fé falsa. Hoje há uma sutil e mortal diferença. Quem defende sua fé a defende por ser sua, por estar dentro de si, por ser mesquinhamente seu pertence, um objeto. Antes a fé era sagrada por ser de todos, comum, o maior valor DE TODOS. Hoje ela é ostentada como mais uma criação individual de um grupo de almas especiais e criativas. Um valor de classe, e não um valor de todos.
  Termino dizendo que quando um cara como Hawkins, diz que a humanidade está pronta para deixar a Terra, vejo nessa frase perigosa todo o epílogo dessa história romântica. O ato final do egocentrismo criador, o passo rumo à ilusão de uma liberdade que não existe, o sonho de um mundo sem natureza.