O QUE TEMOS DE MAIS MEDÍOCRE DENTRO DE NÓS?

   Qual o assunto principal de nossas vidas nos últimos 200 anos? Do que falam os filmes, livros, peças e a maioria de novas áreas de estudo? A resposta é tão óbvia que se torna até opaca: relações pessoais. De 1800 para cá, a impressão que temos é a de que viver se trata de se relacionar com alguém. Mas a questão que se deve colocar é: isso é verdade? O centro da vida é a relação pessoal, ou isso é mais um tipo de crença ideológica que nos foi imposta? Ian Watt, professor em Stanford e figura de centro dos estudos literários ingleses, vai fundo. Sua abordagem engloba história e filosofia, antropologia e arte. A resposta? Somos filhos de uma conjugação que une religião protestante, capitalismo e romance. E todas essas forças, alinhadas ao acaso, levaram àquilo que somos, seres ansiosos em busca de alguém. Porque? E quem é esse alguém?
   O primeiro romance: Robinson Crusoe. Um homem em sua ilha. A aventura de se virar sózinho. A técnica salvando um homem da miséria. Ele faz da ilha uma fábrica. Com ferramentas ele enriquece. E nunca sente a solidão. Seu medo é o de perder sua liberdade. O homem vencendo o meio natural. Sózinho. Daniel Defoe cria o romance de ação pura, de realização. Ele descreve a realidade. Nada é sobrenatural. Nada é obra de acaso ou de deuses. E Crusoe não é especial. Ele é como nós. Classe média.
   O romance é a primeira forma de narrativa que exalta o banal.
   O segundo romance. Clarissa de Richardson. Uma moça virtuosa que é seduzida pelo patrão. Mas ela vence, os dois se casam. Aqui nasce a descrição da vida interior. Homero, Petrônio, Bocaccio, e mesmo Cervantes pouco falam da vida interior. Pouco analisam sentimentos e motivações. Pouco descrevem, eles contam, narram, sem se preocupar com realismo. É fantasia sem culpa. Porque as coisas mudaram então? Com Clarissa, Richardson cria o romance como arte da feminilidade. Ou voce nunca percebeu que romances são coisa de mulher? Que mesmo machos como Tolstoi ou Faulkner observam a vida em detalhes e cuidados femininos? Homero é a hiper-masculinidade. A ação pura e direta. A aceitação sem observação. O romance é delicado.
   A indústria levou o povo para a cidade. E na cidade o que havia era medo e confusão. No campo todos sabiam de todos. Agora não mais. No campo se trabalhava e se via o resultado. Voce plantava e colhia, criava e comia. Fazia e vendia. Na cidade voce passa anos fazendo uma asa de xícara. Sempre a mesma. E na vida do campo voce via a vida, começo meio e fim. Na cidade não mais. O que voce vê são paredes. Sózinho, sem tempo para nada a não ser trabalho, solitário como jamais antes, sem parentes próximos ( no campo uma familia se compõe de tios, primos, avós ), o que voce faz? Cria sua ilha imaginária de auto-suficiência. Voce lê a vida que não pode ter. Ou melhor, lê aquilo que te dá sentido. Lê sobre voce.
   Mas vem daí um problema. Quem tem mais tempo livre? As mulheres. Romances desde o princípio são coisas comerciais, populares, com público alvo, e esse público é a mulher. Os romancistas que se destacam sabem falar à mulher. E mulheres gostam de sentimentos sutis, vida interior, a casa e o quarto.
   Outro fato: em 1700 há uma grande crise do casamento. Os homens não desejam mais se casar, ocupados que estão com o dinheiro. Solteiras se proliferam, mulheres que não sabem se manter, que são inuteis. Surge nessa época a ideia do casamento como coisa sublime, desejável, suprema. O calvinismo ajuda nesse processo. Pois veja: no catolicismo homem santo é aquele que se isola e vive para a alma. O homem sublime é solitário. No calvinismo o homem sublime é pai de familia, tem filhos e uma boa esposa. Solidão seria egoísmo para Calvino. Mas há mais. Para católicos a iluminação vem de Deus para o fiel, para os calvinistas ela vem quando encontramos Deus dentro de nós. Introspecção versus iluminação. Romances são introspectivos. Nada há de introspectivo no mundo pagão de Homero ou no catolicismo de Cervantes. Mas na Inglaterra de 1700 tudo caminhava para isso. Solidão nas cidades, vida ditada pelo trabalho  e pelo tempo, introspecção espiritual, e a transformação do casamento em ato sagrado e no único sentido para a vida. Tudo o que entendemos como romance está nesse perfil.
   Posso então voltar a pergunta: Porque os livros são como são? Porque somos criados a acreditar que tudo se resume a relações pessoais?
   Voce nunca teve a sensação de que um grupo de amigos falando e falando e falando sobre namoros, flertes e noitadas se parece com um bando de solteironas falando sobre noivados? Nunca pensou que isso é extremamente limitante? Que seja Proust, Conrad ou Mann, sejam filmes de Antonioni, Von Trier ou Lynch, a questão de fundo sempre é: eu e alguém. Voce não sente alivio quando vê ou lê alguma coisa que foge disso?
   Faz duzentos anos que oramos, estudamos, ganhamos dinheiro e fazemos ginástica ou terapia com apenas uma coisa em mente: a relação com o outro. E o que pergunto é: isso é nato ao ser-humano? Não, claro que não. É ideologia, como é o catolicismo e todo ismo que existe. A ansiedade por relação passa a existir apenas no momento em que o homem perde sua familia, a enorme rede de segurança de primos, tios, vizinhos etc. Passamos a colocar tudo no amor. O amor deverá ser nosso deus, nossa familia, amigos e prazer. O romance surge exatamente nesse momento crítico e se ocupa desse universo.
  Um grego iria rir de nós. Nos acharia débeis, atrofiados, feminilizados. Suas narrativas eram sempre sociais, o herói e a cidade, o estado e os deuses, a guerra e o destino. O homem para eles é parte de um todo. Ele não se interioriza e ansia por companhia porque ele vive sem solidão. Ele sofre, claro, chora, mas por outras razões. Por dores relacionadas a familia, ao estado e a injustiça. Nunca por solidão e muito menos amor de romance.
   Já nós somos capazes de num filme de guerra nos interessarmos muito mais pela mocinha e seu amor que pela Inglaterra e a Alemanha. É isso que temos de mais medíocre.