A BELEZA DENTRO DA REALIDADE: A NEW WAVE INGLESA NO CINEMA.

Aqui no Brasil a cultura francesa sempre mandou. Hoje, 2020, a americana tem seu poder, mas em lugares como a USP quem manda é ainda a França. Quando voce pega a lista de artigos a serem lidos no semestre, 70% são de autores franceses. O resto é dividio por russos e americanos. Ingleses quase não há. Por isso herdamos o desprezo, aqui absoluto, ao bom senso e a praticidade. Amamos complicar. Amamos leis. Amamos o selo de aprovação. -------------------------------------- Se em 1959 a Nouvelle Vague teve início, em 1958 começou a New Wave inglesa. Críticos como Godard e Truffaut nunca cansaram de criticar o cinema inglês. Pegamos essa opinião de carona. Nossos críticos da época, e nossos novos diretores, nada viam de novo no cinema britânico de então. Preferiam seguir Godard e às vezes o neo realismo italiano. Pena. Os filmes ingleses seriam perfeitos se usados como influência sobre o cinema paulista, por exemplo. Walter Hugo Khoury imitava Bergman e Antonioni em 1963. Seria muito bom se alguém imitasse John Schlesinger ou Tony Richardson. Mas não rolou. -------------------------------------------------- O cinema inglês sempre foi brilhante. Mas, diziam alguns, era um cinema que só tinha olhos para a classe média e para as cidades do sul. Ainda hoje percebemos isso. Quando se fala em cinema inglês se pensa em mais um filme baseado em Jane Austen ou Henry James. Mais um Shakespeare. Mais uma biografia de alguma rainha. Ou mais um Churchill na tela. Históricos, sempre filmes históricos. Quando não, são classe média. Filmes sobre um jovem publicitário ou uma jovem estilista, um morador do Soho ou de Chelsea. E mesmo quando fazem algo sobre crime ou drogas, veja bem, é algo sobre crime e drogas e não sobre a vida comum de gente nada especial. Não se faz nada sobre o povo real. Os 80% que trabalham nos pubs, fábricas e taxis. Somente Ken Loach e Mike Leigh têm obras sobre esse povo. Nas séries de TV nada é muito diferente. Downtown Abbey é cinema inglês dos anos 50. ---------------------------------------------------------- No Brasil não é diferente. Voce verá muito filme sobre gente pobre. Mas apenas sobre traficantes, travestis ou a favelada cômica, a Dona Jura do pedaço. Preconceito terrível: o pobre só importa quando se pode rir dele. Ou quando ele é marginal. Fora isso, os 90% restantes são irrelevantes. Não existem para os bacanas que fazem cinema. ---------------------------------------- Na Inglaterra era assim em 1957. Pobres só quando cômicos. ------------------------------------------------ Carol Reed. Michael Powell. Os filmes da Ealing Studios. Na Inglaterra dos anos 40 e 50 foram feitos alguns dos melhores filmes da história. David Lean. Hitchcock. Mas, é fato, são filmes hsitóricos ou policiais, filmes de fantasia ou sobre as dores dos muito ricos. Todos têm sotaque da BBC. Todos são very, very english. --------------------------------------------------------- Então surge a new wave. E ontem termino de ver 4 filmes do movimento. LOOK BACK IN ANGER. É a peça de Joe Osborne. O texto sobre um jovem em revolta contra tudo. Richard Burton passa o filme todo exalando ódio. O teatro dos angry young man. TUDO COMEÇOU NUM SÁBADO. De Karel Reisz. Albert Finney como o operário que não admite ser menos que um líder e um sedutor. Ele não ri. Ele tem desejo e só desejo. A KIND OF LOVING, o melhor dos quatro filmes, Alan Bates como o educado e muito jovem trabalhador de futuro, que vê sua vida mudar por causa de uma gravidez. THE ENTERTAINER, de Tony Richardson. Laurence Olivier como um ator passado, ridículo, sem talento, que insiste em não mudar. ----------------------------------------------------------------- A tábua de passar roupa. Quando a peça de Joe Osborne estreou foi um choque. No palco, no centro, apenas uma tábua de passar roupa e uma cadeira. O espetáculo consistia em um casal se agredindo. --------------------------------------------------------------------------------- Que Inglaterra era essa? Mal se entende o que Albert Finney fala!!! TUDO COMEÇOU NUM SÁBADO se passa em Nottingham. E a fala de Finney é a de lá. KIND OF LOVING é feito em Bolton. E a vida no norte, e no país norte é tudo que fica acima de Londres, é outra. -------------------------------------------------------- Nos extras um crítico diz que só se pode entender bandas como Smiths ou Joy Division, se olhar-se esses filmes. Morrissey fez todo o primeiro album de sua banda baseado em apenas um filme, A TASTE OF HONEY, e todas as capas e clips remetem ao norte do país. Segundo esse crítico, a cultura do norte, de Manchester, Liverpool, Newcastle, Bristol, Hull, deu origem à toda raiva e ansiedade da onda pop dos anos 60-70 e 80. A Inglaterra que se vê nesses filmes, cheia de fuligem, suja, pobre, repleta de crianças, perdurou até os anos 90. Quem tem 50 anos ou mais viveu essa cultura new wave. A onda do trabalhador que quer se divertir, que briga na rua, que exige respeito, que deseja coisas e não para de arrumar encrenca. E se deprime por não conseguir. A poesia desses filmes. O crítico fala da beleza que irrompe insuspetia dessas imagens. E termino falando disso. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Eu cresci anglófilo. Não sei o motivo. Quando brincava de soldado, aos 6, 7 anos, eu era sempre um soldado inglês, nunca americano e nunca um cowboy. Talvez tenha sido a beleza da bandeira. Ou os filmes de piratas. Não sei. O rock não foi, pois eu amava os Monkees e sabia que eram americanos. Talvez tenha sido o Joe 90? Não sei. ---------------------------------- Quando comecei a ver filmes de adultos, foi natural me apaixonar pelos filmes ingleses. E o que eu mais gostava é que achava a paisagem dos filmes parecida com aquela onde eu vivia. Não eram as calçadas largas de Los Angeles nem os prédios de New York, não era a classe média rica da Feiticeira ou de Jeannie. Nos filmes ingleses a paisagem era a dos bandos de crianças com nariz sujo. As cozinhas entupidas de caixas, e roupas e panelas sem lavar. As ruas cinzentas, estreitas, acanhadas e os imensos terrenos vazios ocupados por tijolos, mato, ratos, latas e muita lama. As camas parecem molhadas e os lençois usados demais. Banheiro não há. Se lavam na pia da cozinha. TV, quando existe, está no canto, na sala que serve como cozinha e lavanderia. Todos falam alto. Todos gritam. Voce sente o cheiro: suor. Meias sujas. Peixe frito. Muito cigarro. Nos pubs, apertados, eles bebem cerveja preta e gritam muito. Se ofendem. Apostam. Sonham. O sexo nunca é bom como foi pensado. As mulheres são feias. Frias. Sofridas. E mesmo assim, há beleza e vitalidade em tudo. As paisagens são de terrificante beleza. Wordsworth revivido. --------------------------------------------------------- Escrevi várias vezes que não há arte sem pobreza. É a fome o combustível da criação. Após os anos 90, quando finalmente toda ruína da segunda guerra foi reparada e a lembrança da fome morreu, a Inglaterra se tornou esse país meio frouxo que é hoje. Somente o imigrante tem ainda alguma vitalidade. Porque ele lembra da pobreza de seu país de origem. Ver esses filmes é ver um mundo que não existe mais.