O HERÓI COMO SER FELIZ, A ODISSÉIA- HOMERO

A melhor coisa que voce adquire ao ler é tomar a consciencia de que o modo como o mundo existe hoje não é o único possível. Mais que isso, já fomos completamente diferentes. O modo como pensamos, sentimos e vivemos é apenas uma etapa na história da vida. E veja bem, não estou dizendo o que pensamos, estou dizendo COMO pensamos. Falemos da Odisséia.
Obra da Grécia arcaica, ela não tem autor. Na verdade, a obra é uma coleção de canções, uma espécie de repente/rap que era passado de voz para ouvido por gerações. E sempre acompanhada por cítara, e talvez, dançada. Narra as aventuras de Odisseu, herói grego que tenta voltar para casa após a vitória sobre os troianos. Mas o deus Poseidon não quer que ele volte. Enquanto isso, em sua casa, Penélope, sua esposa, deve rechaçar pretendentes e seu filho Telêmaco tornar-se um homem. Esse é o tema contado muito superficialmente. Mas do que trata o épico e o que ele nos diz hoje?
Nos mostra um mundo tão distante do nosso que se torna quase incompreensível. Primeiro fato: A escrita já existe, mas ainda não é dominante. Ou seja, o que se fala ainda é mais importante. O pensamento, por ser falado e cantado e não escrito e lido, está livre, solto. Ele ainda não está preso a caracteres e a léxico. O que eles falavam era como água e não a rocha imutável que veio a ser.
Segundo: Tudo é exterior. A introversão não existe. O homem existe como ação e não como reflexão. Mais que isso, a vida interior ainda não foi inventada. É estranho dizer isso, porque cremos que vida interior é um atributo nato ao humano. Mas não, ela é criada pela cultura, a subjetividade não nasceu como nasceram o desejo ou a guerra. Os poetas líricos ainda não haviam se voltado para dentro de si-mesmos analisando os sentimentos, e o teatro ainda não fora criado, o homem ainda não se via como ator em drama vivo. O homem então era um ser aberto para fora, ele olhava a vida e reagia a ela. Interessante notar que mesmo a beleza física, tão valorizada nessa época, é vista pelo outro e nunca por si-mesmo. Ninguém fica se glorificando por sua beleza, são os outros que a idolatram.
Terceiro: Tudo tem um sentido. Em cada coisa que ele vê há uma razão, mesmo que essa razão lhe seja oculta. Nada é gratuito, tudo tem um fim. Deuses regem tudo o que acontece, e Deuses são como homens, vingativos, ciumentos, cruéis, impulsivos e sexuados. A noção de pecado não existe como a conhecemos, o que existe é a ofensa ao deus. E tudo pode ser um deus. O bicho na mata, o vento que sopra, o estranho na rua, cada coisa na vida pode ser manifestação de um deus. Portanto, para esse grego, tudo deve ser respeitado, homenageado, e mais: a cortesia é lei. Quem bate a sua porta deve ser abrigado, ele pode ser um deus lhe testando.
Quarto: A morte não é o fim, mas todos vão para o Hades, um tipo de inferno/purgatório. O que o grego mais deseja é uma morte honrosa e principalmente o não-esquecimento. Nada é mais desonroso que passar pela vida e não ser recordado após sua morte. Mas não a fama pela fama, e sim a lembrança da honra. Para o grego de então ( muito antes de Platão ), cada geração que nasce é a confirmação do brilho da geração original. Meu bisneto abrilhantará meu nome.
Nesse contexto temos a história de Odisseu. E a arquitetura de sua aventura é até hoje o caminho de toda aventura ocidental: o mar/estrada, a tentação, a queda, o amadurecimento e o retorno a casa. Herói feliz por ser herói que jamais se questiona, o mundo em que ele vive é seu mundo, ele é esse mundo, esse mundo é feito para ele. A mente ainda não tem a pretensão de crer que ela pode tudo entender e cada ação não tem preço ( questionamento ).
De certa forma, toda vez em que nos vemos desejando um mundo mais simples, sem complicações, estamos com a nostalgia dessa Grécia arcaica. Mundo que jamais voltará, pois expulsamos os deuses de nossa vida, desalojamos esse seres de seu Olimpo, tomamos para nós o peso da vida, criamos a subjetividade, a liberdade. Ler hoje A Odisséia é perceber que nossa mente, nosso mundo, nossa fé é apenas uma possibilidade, um modo de viver. Odisseu iria rir de nossos medos e ridicularizar nossa pretensão. Para ele todos nós seríamos quase bichos, porque se o que para nós define o humano ( razão e linguagem ) nos basta, para ele essa humanidade é definida por engenho, coragem e respeito aos deuses. E coragem, habilidade e respeito ao sagrado ( vida ) tem faltado em todos nós.