QUANDO A FANTASIA ERA A VERDADE

Perdemos a fantasia quando ficamos adultos. Se voce ainda a tem, parabéns. Se nunca a teve, lamento por voce. Dizem que artistas a preservam por toda a vida. Mentira! Artistas trabalham. Inventam, raramente fantasiam. Não confunda fantasiar com ser criativo. Fantasiar é negar o mundo que todos percebem e perceber ou querer viver em um outro universo. Aos 15 anos eu vivi o apogeu da minha fantasia. -------------- Era 1977 e eu abandonara a escola. Não tinha absolutamente nada para fazer o dia inteiro. Vaidoso, como todo adolescente é, criei uma ilusão de que eu tinha de ser uma espécie de gênio. Sim, não ria, isso é muito mais comum aos 15 anos do que voce pensa. Minha rotina era a da descoberta da genialidade. Acordava em meio a um frio glacial ( aquele ano teve um dos piores invernos da história ), e lia a Barsa. Em 1977 eu li a Barsa inteira. Ainda posso sentir a gripe que me acompanhou por todo o ano. O odor das páginas velhas. Minha cama cheia de cobertores e meu pijama de flanela. Depois disso eu ligava o rádio: Cultura FM. Música clássica por toda a tarde. Meu irmão ia à escola e minha mãe à ginástica. A casa era minha. E eu vivia a fantasia de ser um pobre gênio tuberculoso em 1877. Sim, 1877. Devo confessar: era uma delícia! -------------------- De madrugada eu lia Dickens, Bronte, Hardy, London, tudo à luz de um abajur com luz fraca. O vento batia na janela, a casa adormecida, e eu naquele universo de lama, névoa e cheiro de Vick Vaporub... Meu irmão ria de mim! Ele dizia que eu só conseguia ler se passasse Vick Vaporub no peito. -------------- Viver cem anos antes em 1977 era mais fácil que seria hoje. No Brasil de então a vida era mais lenta e essa fantasia não era muito trabalhosa. Eu andava pela cidade dentro da fantasia, imaginando uma bengala em minha mão, e os ônibus, sujos e barulhentos, eram carruagens lotadas. -------------- Havia um incômodo nisso tudo: eu me sentia velho. Hoje eu sei que só um jovem consegue fantasiar tanto, mas eu sentia então que jogava minha juventude no lixo. Toda essa vida era temperada por culpa. Ouvir música clássica e ler livros antigos era coisa de velho. Minha educação deficiente me deu esse preconceito. Preconceito bastante americano aliás. Somente após os 30 anos eu entendi que em 1977 eu fui um adolescente muito, muito romântico. E como tal, eu tinha uma musa, e seu nome era Jeanne. ---------------------- Lembrei de tudo isso agora, ao escutar Vivaldi. Ele foi o primeiro compositor clássico que amei e foi descoberto em 1977 no rádio. Começar por Vivaldi é começar do modo certo. Ele é genial e é acessível. Se voce não sentir prazer com ele não haverá esperança para voce. -------------------- Acho que em 1977 eu cultivei minha jovem alma para o futuro. Não sei que futuro e não sei que alma. Não cabe à mim saber. Das poucas certezas que tenho é aquela que diz que ter uma alma é uma conquista e não um direito. Hoje tenho a idade que em 1977 eu imaginava ser a idade certa para ouvir Beethoven.