SOBRE A GUERRA E A AUSÊNCIA DE SONHOS

Desde que o mundo existe são narradas grandes batalhas em guerras sem igual. De GILGAMESH à ILÍADA, toda civilização tem um mito fundador baseado numa guerra. Na nossa civilização, ocidental e europeia, sempre existiram grandes textos, em forma de prosa, poema ou canção, exaltando herois, batalhas, líderes. Ainda ao fim do século XIX, tempo recente em termos históricos, guerras eram exaltadas. Mas tudo mudou na de 1914. Aconteceu alguma coisa ali que fez com que tudo desmoronasse. Após a PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL, nenhuma guerra seria vista como questão de honra. Na Segunda Guerra ainda haveria a questão do dever e do BEM, Hitler era o mal absoluto, mas beleza e nobreza, nunca mais. -------------- Até fins do século XIX a guerra era familiar. Por várias razões. Toda família tinha alguém que era ou fora soldado. Toda vizinhança tinha seu ex combatente. A vida militar era próxima, comum, inquestionável. Uma nação era um conjunto de famílias, de ruas e de coisas muito conhecidas. Uma nação tinha odor, tinha som, tinha toque. Ir à guerra era honrar um avô ou um tio que lá estivera e também era defender as cores pela qual tantos morreram. ---------------- Mas havia mais. Estupros e roubos sempre existiram, mas eram punidos ou pelo menos vergonhosos. A guerra se dava em campo escolhido, com momento acordado e divisões bem alinhadas. Somente bárbaros não seguiam a etiqueta mínima da guerra. O inimigo era como voce, uniformes e armas parecidas, táticas elaboradas, um jogo de morte e de horror, mas era um jogo. Estar lá era como estar numa onda de febre ou em velório: fazia parte da vida. A guerra era parte do costume. ------------- Ao contrário do que se pensa, morria-se pouco. Havia muita mutilação, mas os índices de mortes eram por volta de 30% numa batalha. Na Idade Média era ainda menor. A chance de voltar de uma guerra coberto de medalhas era de 70%. Era um jogo com boas chances. Por isso tantos iam à guerra. ---------------- Em 1914 se alistaram com esse espírito. E só no campo de morte descobriram que o índice de mortes era de 80% !!!!! Na aviação a chance de morrer após 3 batalhas aéreas era de 90% !!!! Pela primeira vez se morria mais do que se sobrevivia. A evolução científica do extermínio destruíra a guerra honrosa. Gás, fogo, metralhadoras, canhões, granadas, minas....lama, arame farpado....eram batalhas que não tinham hora para começar e por isso duravam anos. O campo de batalha se alastrava como tumor. Não era mais um jogo. Era uma anarquia. -------------------- Quem sofreu um trauma sabe que o começo da cura vem pela capacidade de narrar esse trauma. Uma dor absurda, na narrativa, adquire contornos de história, encontram-se razões, inventam-se porques. Porém a dor muito funda, a dor que não se transforma em narrativa, nunca passa. Ela fica como zona sem palavras, sem luz e sem ar. Um inferno irracional e portanto inalcansável. Esse o trauma mundial criado em 1914. O soldado que foi buscar honra encontrou tédio, tripas, barulho, sangue e medo, muito medo. A coragem valia menos que a covardia. ---------------- Winnicott percebeu que soldados de volta do front não sonhavam mais. Claro: sem a capacidade de narrar, como sonhar? JUnguiano que sou, eu sei que o inconsciente está presente, não se perde isso, mas ele pode se tornar inacessível, incompreensível ou tão assustador que esquecemos do que lá encontramos. Uma grande emoção faz com que possamos acessar nosso inconsciente, mas uma emoção aterradora demais faz com que o calemos. Houve uma ruptura em 1914. Perdemos a capacidade de literalmente SONHAR. Afastamos Deus, afastamos a poesia, matamos o heroísmo. O ruído da batalha não era mais composto de galopes, gritos, tambores e espadas retinindo. Eram estrondos que ensurdecem. Incompreensíveis. Mecânicos. Indiferentes. ---------------------- É isso.