DISQUE M PARA MATAR, UMA OBRA PRIMA SEM NENHUMA AFETAÇÃO

   O filme se passa quase inteiro entre quatro paredes. E voce não tem nenhuma sensação claustrofóbica. Muito menos tédio. É uma peça filmada, quase sem nenhuma modificação, e ao contrário da maioria do filmes feitos sobre peças de teatro, voce jamais lembra estar vendo um texto para o palco. O personagem central é vaidoso, frio, antipático, esnobe, e mesmo assim voce adora sua companhia. Hitchcock diz ter sido tão fácil fazer este filme que ele poderia o ter dirigido via telefone. E voce sabe que ele está brincando. É uma obra prima e ao lado de Intriga Internacional, é meu Hitch favorito.
  Genial em seu modo simples, ficamos sabendo em dois minutos quem é quem: um ex tenista casado, em Londres, é traído por sua esposa rica. O outro é um escritor americano. O marido irá elaborar um plano detalhista e racional, para assassinar a esposa. Falo o resto? O assassinato não acontece, e então ele executa outro plano: fazer a esposa ser condenada pelo crime que ele desejava cometer. O que assistimos, com supremo prazer, é  a concatenação de detalhes que compõe um todo complexo. Hitch sabia de como é satisfatório presenciar a exibição de inteligência e método, mesmo que seja em um crime. O marido, feito de modo magistral por Ray Milland, aqui melhor que no filme que lhe deu o Oscar, este é o papel de sua vida, é puro exibicionismo. Milland compõe um tipo cheio de olhares, gestos, trejeitos, tudo é como uma ourivesaria de atuação, uma joia em atuação charmosa e repulsiva. Já Grace Kelly, a esposa, além de estar no auge da beleza, não me lembro de mulher mais linda em filme nenhum, nem ela mesma nunca mais esteve tão bonita; atua com sutileza. Ela expressa culpa, sedução, medo e confusão. É o contraponto exato à Milland. O outro grande ator do elenco não é o amante, mas o inspetor de policia, John Willians, solidez e bom senso, calma e método, uma atuação de simpatia sublime.
  Há que se dizer o segredo da leveza e da inteligência deste filme: a câmera. Ela não para. Rodopia pelos móveis, vai do chão ao teto, inova em ângulos diferentes, viaja em todo canto possível e impossível. Mas com um detalhe central: jamais percebemos isso! Estamos tão envolvidos pelo roteiro perfeito que não prestamos atenção em seus truques. Hitch nunca se perdeu. Seus filmes são cheios de truques, mas o centro é sempre a história a ser narrada. Por isso sua arte nunca parece afetada. Ele jamais diz: Hey! Olhem este efeito! Seu foco é aquilo que os atores fazem e falam.
  Muita gente comenta hoje o que ele faria com nossas câmeras tão leves e nossos efeitos digitais. Provável que botasse todos os ouros no bolso e nos surpreendesse a cada filme. Isso porque ele era curioso, insaciável, irrequieto e não tinha medo de experimentar. Mas acima de tudo ele era meticuloso. Planejava. Construía e executava estritamente o que estava dentro do plano central. Nada de improviso. Nada de última hora. Para nosso cinema de alta tecnologia, seu modo de encarar a arte cairia como uma luva. Técnica acima de tudo.
  Eu devo ter visto este filme já umas cinco vezes. E sempre sou pego odiando Milland e tendo um orgasmo quando a verdade aparece. É um prazer intelectual. Sinto a satisfação de ver um plano perfeito ser desfeito por uma intuição ainda maior. Acima de tudo o cinema de Hitchcock é sempre uma questão de inteligência. Nosso cérebro é usado. E isso é cada vez mais raro.