ACONTECEU NAQUELA NOITE, O FILME MAIS FELIZ DA HISTÓRIA

     Em 1934 os EUA eram um país muito, muito triste. Era a nação dos livros de John Steinbeck. Quebrado. Filas de sopa. Muito crime. Suicídios. O país tentava se reerguer e uma das apostas para isso foi a de não permitir que o espírito americano se quebrasse. Os EUA são assim: ao contrário da maioria das nações, quando a coisa aperta eles olham para o espelho e reafirmam aquilo que são. É como se eles necessitassem da crise para se renovar.
    O cinema participou dessa recuperação de várias formas. Uma delas foi a de fixar, recordar, afirmar o tal espírito da América. Frank Capra ganhou 3 Oscars durante essa crise. Ninguém fez mais pela democracia americana no cinema. Em 1934 ele ganhou o primeiro de seus prêmios. Aconteceu Naquela Noite foi o primeiro filme a vencer os 5 prêmios principais: filme, direção, ator, atriz e roteiro. Só 39 anos mais tarde, em 1975, Um Estranho no Ninho repetiria esse feito. Seria interessante comparar os dois filmes para ver o que mudou na América. Muito menos do que voce imagina. Ambos os filmes reafirmam o poder do indivíduo contra o sistema. Mas este texto não é sobre 1975. É sobre 1934. E em 34 ainda se podia apostar na alegria.
   Uma menina milionária foge do pai para se casar com um playboy. Na fuga ela conhece um jornalista desempregado. Os dois se odeiam e se ajudam. O resto voce já sabe. O tema lhe parece batido? Bem...a teoria literária diz que não existem mais de 20 temas para se narrar e todos estão na Bíblia. Desde os tempos de Lot e Set, a gente repete os temas. O que importa é como esse tema é narrado. Neste filme a narrativa chega à absoluta perfeição.
   Observe a edição. Cena a cena voce tem a sensação de que não há um segundo de filme desperdiçado. Ele não é rápido, não é lento, ele é exato. Tudo, tudo o que acontece tem a marca de profundo interesse. Primeiro acerto raro: O filme interessa. Os personagens são interessantes, todo coadjuvante é marcante, e cada diálogo parece ao mesmo tempo real e interessante. O filme é pura fantasia, mas parece realidade. Capra sabia como nenhum outro fazer isso. Seus melhores filmes parecem ser o mundo que queremos crer. Desse modo parecem mais reais que o realismo pode ser. Porque eles são aquilo que vive dentro de nós. Capra sabia, por intuição, qual era a verdade do coração médio. Populista no melhor sentido, ele traduzia em filmes aquilo que restara de bom em meio ao desespero. Isso era magia.
  O filme é, durante 90% do tempo, o mais feliz dos filmes. A fotografia brilha. Os contornos parecem de neon. Todos os personagens são vivos, não necessariamente felizes, porém vivos, cheios de energia. Claudette Colbert está frágil e adorável, a rica herdeira mimada que nada sabe da vida. Clark Gable rouba o filme. Ele é duro. Realista. Violento às vezes. E incrivelmente verdadeiro. É o cara que toda mulher queria ter como namorado e todo cara queria ter como amigo. Como Capra conseguiu criar isso? Com cenas despretensiosas e de extrema concisão. Por exemplo, a famosa cena da carona, uma obra prima de tempo e movimento. Toda a sequência da cantoria no ônibus, uma das cenas mais alegres do cinema. O modo como Clark Gable fala do livro que vai escrever, a troca de olhares entre os dois, a maneira como ele estende uma coberta entre os dois. Capra veio do cinema mudo, e como todo diretor que trabalhou só com imagens, ele sabia falar sem som.
  Talvez os melhores momentos do filme sejam os mais tristes, os 10% quase ao final. O casal vai chegando ao fim da viagem e a hora da separação se aproxima. Ela toma consciência do que sente e descobre que não quer chegar a seu destino. Observe como o filme muda. A fotografia fica mais escura, sem brilho, dura. Clark perde a agilidade, seu corpo fica pesado. Sentimos na alma a dor de um amor que nasce errado. Eles brigam, óbvio. O filme tem de desabar. Ficamos com raiva. Mas é tudo plano de Capra. Quando o final feliz acontece não nos sentimos enganados, nos sentimos vingados. Tem de ser assim. O fim tem de ser feliz. Não haveria outra possibilidade.
   Quando comecei minha coleção de DVDs, já 15 anos atrás, Frank Capra foi um dos últimos dos grandes que assisti. Eu tinha imensa má vontade com ele. Isso porque nos anos 70, quando comecei a ler jornal, críticos de cinema diziam ser ele um direitista quase fascista. Já gente como Rubens Ewald Filho dizia que Capra era um maravilhoso defensor da democracia americana. Direitista, liberal, usando seus filmes para afirmar o valor do individuo contra o sistema. Seguindo a maioria eu o queimei. Como queimei Hawks, McCarey e Ford, todos "de direita". Nos anos 80 essa bobagem se desfez e um diretor passou a ser medido pela sua obra e não por seu engajamento. Mas ficou um resquício em mim. O nome Capra me dava uma sensação de filme velho, piegas, tolo. Que surpresa quando assisti este filme pela primeira vez! Era leve, alegre, jovial, otimista, e celebrava as pessoas comuns, banais, o tal povo.
  É um filme festa. E como tal ele nos adverte de que o homem pode ser um ser feito de esperança. De sonho. E acima de tudo, de fé.