PÁSCOA

   Deus saiu da minha vida quando eu tinha mais ou menos 7 anos. Não me pergunte por que. Mas lembro muito bem que já nessa época eu sentia a distância enorme que havia entre eu e aqueles que pareciam crer. Meus pais não iam à igreja e foi provavelmente isso que me fez ser o que eu era: dividido.
  Estranha situação que só neste exato momento recordo. Meus pais, segundo a moral católica de então, viviam em pecado. Eram casados no civil, mas não no religioso. Apesar de ambos crerem em Deus, não tinham dinheiro para a cerimônia quando se casaram, e depois, quando o dinheiro já havia, meu pai adiava a data indefinidamente. Então eles não se sentiam confortáveis para entrar numa igreja. E ao mesmo tempo queriam que eu crescesse como católico. O que era feito então? Minha tia me levava à missa dos domingos.
  Na mente de uma criança de 7 anos a coisa era confusa. Lá estava eu, dentro de uma imensa igreja azul. Lotada de pessoas de todo tipo. Abafada. Ao meu lado eu via minha tia, véu negro sobre a cabeça, rezando. Eu estava alí, mas por que não meus pais? Agora, tanto tempo depois, é que percebo que seria impossível eu ter fé, a verdadeira fé, nessa situação estranha. Como herança, cresci desde então com a sensação vaga de que Deus não me queria lá. Se meus pais não podiam ou não queriam ir, eu estava no lugar errado.
  Na minha adolescência Deus era um assunto sem lugar e quando virei adulto eu sentia orgulho em me dizer ateu. Tudo mudou quando meu pai faleceu. Em 2008.
  Veja, não foi a dor que me fez mudar. Deus não foi consolo de desespero. Falo isso com segurança, porque meus piores momentos na vida foram muito antes, em 1986, 1987. E não me agarrei à Deus para me consolar. Não consegui nem tentar isso. Simplesmente me era impossível cogitar esse caminho.
  Mas em 2008 algo aconteceu. Não há como explicar. Tudo que consigo dizer é que houve uma tristeza profunda, um desalento sem fim, uma sensação de vida que se perde em vão. Mas ao mesmo tempo tudo isso vinha entrelaçado com doçura, com aceitação da verdade, com profunda humildade. Eu me desarmei e senti que Deus entrava em mim. Aconteceram experiências simples e estranhas, mas não podem ser ditas.
  E assim, por 10 anos eu vivi numa espécie de paz divina. Mas veio 2018, e agora posso confessar que então eu perdi Deus pela segunda vez na minha vida.
  Foi meu segundo encontro com a morte, a morte de uma segunda pessoa central em minha vida e dessa vez o efeito foi contrário. Tudo que houve de significativo em 2008, aqui nada valia. Foi uma experiência do sem sentido, do vazio e de uma profunda raiva. Se a morte do meu pai trouxe paz e doçura, como se ela fosse o capítulo perfeito em um livro correto, esta trouxe perda e desânimo. Como fosse um ruído estridente numa sinfonia perdida.
  Faz quase dois anos já. E nesses dois anos eu nunca mais consegui pensar em Deus. Não sinto por Ele nem medo, nem distância. Não há dúvida e nem certeza. Eu não consigo O sentir. É como uma ausência. Daí a certeza de que O perdi.
  Durante dez anos eu olhava para o céu em meus momentos ruins, e tinha a certeza de estar em Sua companhia. Falava com Ele em pensamentos ao andar na rua. Erguia minha mente à Ele antes de dormir. Nos últimos dois anos não há nem a possibilidade mais remota de eu tentar isso. Meu céu ficou vazio. E isso é pior que o ateísmo, porque como ateu não há vazio pois não há céu. Voce não sente falta do que nunca provou.
  Mas eu senti a doçura da Presença.
  E não a sinto mais.
 Amanhã é Páscoa e eu amaria escrever uma carta para Deus. Falando da saudade que sinto Dele. Do quanto Ele faz falta.
  Talvez Ele não precise de cartas.
  Talvez Ele esteja aqui.