O TERCEIRO TIRO. HITCHCOCK. A MORTE QUE NÃO IMPORTA.

  Os primeiros quinze minutos são das coisas mais perfeitas que, não só Hitch, mas qualquer outro diretor já filmou. Os créditos iniciais, animados, com a trilha sonora brilhante de Bernard Herrmann ( ele, o diretor, a considerava a melhor já feita ), então as paisagens de Vermont em cores brilhantes. Úma criança, e então uma morte. Um velho caçador que fala seus pensamentos. Descobre o cadáver e pensa que o matou sem querer. Ele se esconde enquanto várias pessoas passam por lá...
  Há aqui humor absurdo. Nonsense. Muita britanicidade. E beleza, uma beleza tétrica. Ironia aos montes. Harry é o morto. E morto ele é ao mesmo tempo um estorvo e insignificante. Nada vai acontecer no filme inteiro. Não lhe prometo emoção nenhuma. O filme foi um fiasco em sua época. Mas Hitch o amava, e não só por ser um patinho feio, mas sim por ser um filme impossível.
  A cidade tem só 3 casas. Há um policial. Uma criança. Um pintor. E duas solteironas. E uma ruiva, mãe da criança. Esse é o elenco inteiro. Nenhum deles é muito normal. Todos são excêntricos. Na verdade o único interesse deles é sexo. Todos os diálogos, se vc prestar atenção, são convites ao ato sexual. Eles querem acasalar, e na primeira fala do filme, a do velho caçador "assassino", já se entrega isso. Diz ele que "caçar é maravilhoso porque satisfaz nosso instinto mais primitivo". Exatamente como o sexo faz.
  Hitchcock trata, em todos o seus filmes, de "apenas" dois assuntos: sexo e morte. Qualquer pessoa com honestidade básica sabe que são os únicos temas que importam. Todo o resto é consequência, quando não futilidade. Este filme mostra, da forma que os anos 50 permitiam, que ao lado de um morto, tudo que nos resta é acasalar. A morte aqui não tem a menor importância. Quem se importa com Harry? Ele só desperta alguma atenção quando impede um namoro ou um casamento. Fora isso, é somente uma coisa a ser esquecida. Nunca Hitchcock foi tão direto. E ao mesmo tempo tão delicado. Isso porque o filme é um idílio. O lugar é um tipo de paraíso, e não há nesses lugares nada escondido, não é um falso paraíso, é aquilo que vemos, pessoas que vivem suas vidas comuns. São esquisitas porque as vemos de perto, bem de perto.
  Não é um dos grandes filmes do gênio, mas é um daqueles em que ele revela seu riso debochado. Ele se dava a esse luxo. Cada 3 ou 4 sucessos, um filme pra brincar. Aqui vemos seu playground.
  Shirley MacLaine estreia no cinema aqui. O elenco ainda tem o grande Edmund Gwenn. E John Forsythe. É um filme barato. E com cores espetaculares. O destaque é Bernard Herrmann. Sua trilha tem dois temas básicos: um irônico e um arrebatador. Nos dois ele apresenta aquilo que sua música é : perfeita. No meio dos anos 60 Hitch perdeu seu compositor. Os dois nunca mais foram os mesmos. Há encontros que parecem escritos no céu.