A PEDRA DO JAPÃO. ( UM MODO DE TENTAR EXPLICAR O QUE NUNCA PODERÁ SER EXPLICADO.

   A manhã surge e nós a encaramos como uma imagem. Ou melhor, não a encaramos, apenas a aceitamos. Por não haver um passado, não a comparamos com outra manhã. E assim, não temos como concluir aquilo que ela será antes de ser. É manhã. Ei-la.
  ( E talvez ao reencarnar percamos toda a memória de outra vida exatamente para que possamos ver a manhã como a primeira manhã. Isso faria todo sentido. Pois para que voltar e ver a manhã de número milhão... ).
  Isso é a criança. A manhã é aceita como manhã. E é tão aceita que a gente a pega e brinca com ela. A manhã se torna mais uma parte de nós mesmos. E inventamos funções para ela. Ao brincar começamos a destrinchar as coisas e ao destrinchar a gente as destrói.
  Mas eu falo de antes. Antes de brincar. Falo de quando a manhã era uma coisa aceita em passividade. Falo de quando a gente é quase cachorro.
  ( Escrevo isto no jardim. E uma mulher passa com um nenê lindo no colo. E esse nenê não me nota. Nem mesmo nota meu cachorro. Nem as plantas ou flores. Ele ri e aponta a arara de madeira pendurada na parede. Vermelha e azul.  )
  Todo artista pensa e trabalha para poder despensar e destrabalhar. Ele tenta olhar a arara e se maravilhar só mais uma vez. Ou, ele tenta fazer alguma coisa que nos faça ver a manhã e a aceitar como ela é e não como foi ou como deveria ter sido. A gente embaralha. Mas embaralhar é estragar tudo. Pois o embaralhamento só pode ser feito por quem conhece o baralho.
  A linguagem humana nasceu para contar o número de sacas de trigo. E para prometer pagar o que se deve.
  A linguagem humana é apenas isso.
  Quando usamos a linguagem humana para falar de Deus, ou do amor, ou mesmo da criança, transformamos Deus em trigo, o amor em quilos e a criança em débito. A linguagem foi criada para contar, pesar, cobrar e prometer.
  Nem Deus, nem o amor, nem a infância e nem mesmo a guerra, nada têm com isso. Ao falar delas as vulgarizamos.
  Em 1971 meus olhos se abrem  e vejo a janela com sua cortina branca. Ela voa e a luz do sol passa e entra e bate no chão. Um galo canta longe. Minha mãe canta ao longe. Sinto no peito uma explosão. Essa explosão, e o galo e a cortina e a mãe e o sol são todos manhã. E eles são tudo naquela hora.
  Essa hora, nove da manhã em abril de 1971, não é, ali, hora. É sol e galo, mãe e explosão no peito. A hora não faz parte de nada que vive ali. O tempo está ausente. E por isso o sol, a mãe, o galo, a cortina são sempre. Além do lá.
  A intuição é o pulsar dessa vida infantil. Melhor dizendo: primordial.
  Intuir é o breve momento em que nosso corpo inteiro balbucia sem voz, em imagem: Eis o que é. Ou então: Nunca.
  Intuir é ver sem considerar a experiência. E sem temer ou desejar uma consequência. Não pesa. Não mede e não cobra. Então é sem linguagem.
  Traga-me uma pedra do Japão.
  Não sei para que ou por que.
  Mas traga.