A DOR

   O mundo moderno não aceita a dor. Há a ilusão, presente no consumo, na ciência, na droga, de que a vida sem dor é alcançável. Corre-se para se fugir da dor. Da lembrança da dor, da herança da dor. A ciência procura outro planeta, um planeta zero, um planeta onde não exista história, passado, dor. Casas antigas, monumentos, tudo que possa recordar uma história dolorosa é destruído. Fugimos. O tempo todo engolindo festas, séries, pílulas, sexo, compras, tudo para não sentir, ou para sentir só prazer.
  Mas a conta não fecha. A dor continua existindo. Uma dor cinza, mal aceita, negada, somatizada, emburrecida, pior de tudo: dor sem sentido. Não sabemos mais reconhecer a nossa própria dor.
  E é ela que nos dá humanidade. Nossa dor é aquela que nos diferencia radicalmente dos animais. O humano é o bicho que sofre. Nossa ilusão é voltar a ser macaco. O humano sofre porque pensa. Sabe que morrerá. Mais: o humano sente-se só. Por mais que ele faça sexo, por mais que se case, por mais que ande em grupo, o humano é o bicho que sente o abismo que existe entre seu EU e as coisas ao seu redor. Esse abismo só é transposto pelo amor. Mas amar dói. Sim, o amor é companheiro da dor. ( Mas pode ser vencida essa dor. A dor quando aceita e purgada vence a dor. Esse o preço que ninguém mais quer pagar. )
  Nietzsche errou o alvo. Como um adolescente que culpa os velhos pelo mal do mundo, ele teve a ilusão de que a dor foi inventada pelo cristianismo. A dor sempre existiu, Desde o primeiro homem a pensar na morte. Judeus não criaram a culpa. A culpa vive na consciência de que os olhos dos outros nos julgam. Humanos avaliam seus atos e portanto sentem vergonha e culpa. Nietzsche não queria aceitar a dor. Morreu brigando com sua humanidade.
  Freud, outro adolescente briguento, queria crer que toda dor vem da repressão dos impulsos e do instinto vital. Humanos reprimem seu corpo. Se humanos não reprimissem desejos e instintos seriam bichos. Essa divisão vem da divisão entre corpo e  mente, ou entre corpo e alma. Nosso EU estranha seu corpo. Não aceitamos suas fraquezas e suas necessidades. Fome, doença, dor. Essa divisão não foi inventada pela sociedade. Ela é humanidade.
  No mundo de 2016, o mundo do prazer sem culpa, a religião só é aceita se for uma religião que nos livre da dor. Que resolva problemas. Que nos faça feliz. Nada mais idiota. Nenhuma religião verdadeira livra alguém da dor. Ao contrário, toda religião é um sacrifício. A procura da graça que vem após a vivencia da dor. Ser religioso é aceitar e viver a dor de estar vivo e de ser humano. E dentro da dor sentir o porque da dor de viver.
  O que nenhuma religião ocidental tem a coragem de dizer, não mais, é que religião é dor. Por isso nosso profundo incômodo com o Islã. E com Israel.
  Quando voce sofre porque um bosque foi derrubado, uma espécie extinta, uma rua apagada, seu sofrimento é sagrado. Voce pressente que um pecado foi cometido. A ligação do humano com seu ambiente é a ligação da vida com o sagrado. A terra é voce. A terra é o outro humano que te olha. A terra é onde nossos mortos foram enterrados. É onde suas almas vivem.
  Tudo isso é uma dor. Fugir dela só te leva à essa tristeza cinzenta, vaga, que voce tenta curar com bebida, droga, risos bobos, festas, roupas novas. Encare-a de frente. Tenha a humildade de aceitar sua dor. Ame-a. E ajude o outro, sofrido como voce, a carregar sua dor. Que é sua. Que é nossa. Humana.
  PS: Mais um texto inspirado pelo filósofo inglês, vivo, Roger Scruton.