Teve um peixe que foi o último. Quando me mudei pra este bairro, em 1972, ainda viviam alguns peixes nos córregos desta região. Nasci perto, no bairro vizinho, mas como esse bairro onde nasci fica no alto de um morro, o segundo morro mais alto da cidade, não conheci córregos até me mudar em 1972. Fui para um bairro mais baixo e me vi cercado por córregos e até mesmo riachos.
Esses cursos de água ainda existem, nenhum secou. Mas, claro, os peixes se foram faz muito tempo. Não se deve dizer que estão mortos. Sapos ainda resistem. Pássaros brincam às margens. Mato e árvores crescem. Mas a água, imunda, está muito mais baixa. Lembro que havia uma profundidade de um metro, dois, e que agora mal chega a um palmo. O maior dos cursos de água tinha três metros, dava para nadar nele. E tinha peixe.
Sábado no fim da tarde a gente andava pelo bairro. E a vida rodopiava ao redor da nossa mente. Bandos de passarinhos minúsculos se apoiavam nas cerdas de capim e se balançavam na brisa quente de janeiro. Cigarras cantavam alto e gafanhotos pulavam na estrada. Longas carreiras de formigas abriam caminho na terra seca e girinos escureciam as margens dos riachos. E mais ao centro da correnteza nadavam os peixes cor de prata, esguios, frios, condenados.
Não sei quando eles desapareceram. Mas deve ter sido em um ou dois anos. Talvez o riacho tenha secado e depois voltado a ser o que é hoje, raso e pobre. Talvez uma carga pesada de esgoto tenha vindo, e como maldição tóxica, varrido a vida da água. Eu não sei. Mas o último peixe soube.
Engraçado pensar que eu conheço um cara, vinte anos mais velho que eu, que caçou pacas onde agora é o estádio do Morumbi. O lugar era cheio de tatús, de gambás e de gatos do mato. Era 1960, e na boa, 1960 foi ontem! Eu lembro bem de 1980, e em 1980 tudo já era mais ou menos como agora, a única diferença é que tinha mais espaço, muito mais espaço, e muito menos barulho. Sapos e pássaros. O último gato do mato há muito fora embora. Em 1980.
A vida é nossa casa e parece tolo dizer isso. Estou lendo um livro de uma nipo-americana chamada Ruth Ozaki. Houve um tempo em que havia mariscos em Manhattan. Como meu pai um dia viu peixes no rio Pinheiros. E nesse dia ele, imigrante solitário, sentiu que o rio Pinheiros era sua casa também. Ninguém hoje sente que o rio sujo é sua casa. Na verdade ninguém hoje olha para o rio Pinheiros.
A gente vive e a vida é tudo. Desacredito da morte. Religioso que me tornei, vejo a vida como vencedora. Ela existe e fora dela nada pode ser. E a vida, onde ela está, é nosso lar.
O último peixe do último córrego limpo sabia que era um peixe pra sempre vivo. E toda a filosofia de que me sirvo vive nos olhos do meu cachorro. Ele respira. E eu dou graças por isso.
Até o fim.
Esses cursos de água ainda existem, nenhum secou. Mas, claro, os peixes se foram faz muito tempo. Não se deve dizer que estão mortos. Sapos ainda resistem. Pássaros brincam às margens. Mato e árvores crescem. Mas a água, imunda, está muito mais baixa. Lembro que havia uma profundidade de um metro, dois, e que agora mal chega a um palmo. O maior dos cursos de água tinha três metros, dava para nadar nele. E tinha peixe.
Sábado no fim da tarde a gente andava pelo bairro. E a vida rodopiava ao redor da nossa mente. Bandos de passarinhos minúsculos se apoiavam nas cerdas de capim e se balançavam na brisa quente de janeiro. Cigarras cantavam alto e gafanhotos pulavam na estrada. Longas carreiras de formigas abriam caminho na terra seca e girinos escureciam as margens dos riachos. E mais ao centro da correnteza nadavam os peixes cor de prata, esguios, frios, condenados.
Não sei quando eles desapareceram. Mas deve ter sido em um ou dois anos. Talvez o riacho tenha secado e depois voltado a ser o que é hoje, raso e pobre. Talvez uma carga pesada de esgoto tenha vindo, e como maldição tóxica, varrido a vida da água. Eu não sei. Mas o último peixe soube.
Engraçado pensar que eu conheço um cara, vinte anos mais velho que eu, que caçou pacas onde agora é o estádio do Morumbi. O lugar era cheio de tatús, de gambás e de gatos do mato. Era 1960, e na boa, 1960 foi ontem! Eu lembro bem de 1980, e em 1980 tudo já era mais ou menos como agora, a única diferença é que tinha mais espaço, muito mais espaço, e muito menos barulho. Sapos e pássaros. O último gato do mato há muito fora embora. Em 1980.
A vida é nossa casa e parece tolo dizer isso. Estou lendo um livro de uma nipo-americana chamada Ruth Ozaki. Houve um tempo em que havia mariscos em Manhattan. Como meu pai um dia viu peixes no rio Pinheiros. E nesse dia ele, imigrante solitário, sentiu que o rio Pinheiros era sua casa também. Ninguém hoje sente que o rio sujo é sua casa. Na verdade ninguém hoje olha para o rio Pinheiros.
A gente vive e a vida é tudo. Desacredito da morte. Religioso que me tornei, vejo a vida como vencedora. Ela existe e fora dela nada pode ser. E a vida, onde ela está, é nosso lar.
O último peixe do último córrego limpo sabia que era um peixe pra sempre vivo. E toda a filosofia de que me sirvo vive nos olhos do meu cachorro. Ele respira. E eu dou graças por isso.
Até o fim.