Quando em 1974 a seleção da Holanda, o mais revolucionário dos times, surgiu para o Brasil, o que mais me impressionou foi a magreza dos caras. Cruijff era cadavérico e Neeskens parecia um etíope branco. Logo depois, numa entrevista, o gênio do futebol europeu dizia que em sua infância ele aprendera a jogar bola nas ruas, entre as ruínas da guerra. O futebol holandês nada mais era que a lembrança daquela alegria do jogo de rua entre muros destruídos. Lindo não é?
Leio então no livro de Alex Kershaw sobre Capa, que na Holanda pós-guerra, a ração diária a que cada um tinha direito mal daria para alimentar uma criança de 6 anos. De 1939 até a recuperação, que se dá apenas no meio da década de 50, europeus passavam fome. Manteiga, café, leite, carne ou ovos, eram artigo de luxo. A base era batata e pão preto. A falta de tecido é que originou a onda do vestuário mais simples, e não a inspiração de algum Dior. E a fome é que nos levou a magreza como beleza.
As bios de, por exemplo, Keith Richards, MacCartney ou Peter O'Toole mostram isso: terrenos baldios, ruas em escombros, liberdade para andar e sumir, espaços de ninguém. Crianças nascidas entre 1935/1950, de poucos recursos, gripadas, sujas, famintas. Fabricando brinquedos, inventando jogos, sem conforto, usando a imaginação. Vendo os EUA como reino da fartura, sonhando com Hollywood e com Elvis.
Todos eles ao crescer romperam radicalmente com esse passado miserável. Novos ricos, renasceram numa exuberância de sexo livre, drogas, sonhos, utopias e tempo em velocidade. Cresceram em meio ao caos, a carência material, mas por outro lado, conheceram a solidariedade entre vizinhos, a comunhão, sonhos de reconstrução, o ato de se dar valor a um pedaço de pão. Trouxeram para a vida adulta esse conhecimento. Saber o que seja nada ter. Saber o que é só poder contar com sua força e com a little help from my friends. Essa Europa, a Europa de quem hoje tem 80, 70, 65 anos, lhes vem a mente como pesadelo, pobreza "que parece ter sido irreal", ou nostalgia, saudade de "um lugar onde tudo era de todos e todos eram pobres. Juntos." Penso que essa geração, exatamente a que vem antes da minha, a de meus pais, foi a última geração européia a ter força e fé, por ser a última a ter conhecido o desespero e o horror na casa ao lado. A partir dos caras nascidos me 1955, 56 ( sou de 63 ), começa o mimo, a bundice, o não ter o que dizer por não se ter vivido. Tédio. É a geração flácida de Morrissey, a turma chic e esnobe, o povo que luta pela liberdade em um mundo que já liberou tudo.
Leiam esse livro de Kershaw. É uma aula de história. Imperdível.