SONHEI

   ...minha garganta nâo é mais o que foi. Ao engolir o café e perguntar o preço sinto peso onde antes nada havia. Meu corpo possui sólida memória e isso é distinção..
   E no entanto tudo seria tão breve não fosse a garoa que volta às ruas onde vive a certeza de um gosto e a procura da verdade para sempre suspeita. O táxi preto de motor borbulhante e que nos bancos macios e bamboleantes dialoga o cigarro e o perfume entre o bafo gordo de um chauffeur sem voz. As chaves dançam suas correntes de prata dentro do meu bolso onde um lenço cinza vive úmido e amassado tocando a lembrança de meu nariz vermelho e as mãos que foram quentes enquanto o café esfriava.
   O amanhecer parece cantar fazendo suspiros ou talvez muxoxo, arroxeado, sendo a suspenção da garoa e do vento e a entrada da estática que nada mais pode ser: sem sol e sem chuva. Os cordões dos sapatos, firmes em seu nó patriarcal, recordam as mãos rápidas que se aninham nos bolsos das chaves dançarinas.
   Se Langue de Ventadour fosse mesmo assim ele teria partido a noite e não ferido o dia. A luz do sol não revelaria sua vida que manchava todo o caminho do meio ao final. Langue mereceria uma nova chance e teria então o prazer de rever a baía do Porto onde toda vontade se macula ao final dos tortos dias e as dores dos desejos entram sem entrecortar revanche. Hoje olho o ex-libris de monsieur de Ventadour, aquele, o homem do cabelo escuro saudando o disfarce onde mora a canção que do vento ao léu nasce. Nas dúvidas a voz cativante. Aqui vou te mostrar a face de Langue, esse jovem que é promessa de futuro incerto, movendo a vontade de ir mais longe onde tudo explode: onda, barco e peixe e a promessa. Langue desceu. E sobe.
   Se chumbo tornasse ouro, mais que notas, promessas ao futuro, frases escritas em aluviões sem mais pássaros no céu da tarde sempre maior que toda a breve vida. Formação solta na precisão do raio. Olho sem mar, guardar o movimento. O silêncio assombra todo horizonte que se completa.
   Para muito mais depois.
   Detrás do muro de cimento cinza árvores com cipós. Uma palmeira na tarde fria, se estica. Restos de uma casa e duas outras inteiras ao lado. Janela fechada e fachada observando a rua. A outra aberta exibe embrulhos. Mais ainda mais.
   Diálogo de coisas murmurando imagens. O que elas contam não pode ser contado. Trazem memórias de mais coisas ainda. Prometem mundos vários onde as variáveis respiram.
   Qual sementes.
   E no cesto de roupas sujas vivia um rato.
   Eu nunca vi esse rato mas sabia dele. E portanto o rato para mim existia.
   Abrindo o cesto lá entrei para o encontrar.
   Grande lençol branco, retalhos e aventais.
   Me perdi naqueles panos, nas dobras coloridas e nos odores suarentos.
   E eu lembro de tudo o que vivi naquele cesto.
   Onde morava um rato, onde ele existia, e eu, apesar de nunca ter achado o bicho, sei que lá ele estava.
   Pois.
   As roupas no varal e os braços que as esticam. Canta. O vento a alegra porque seca.
   Sabão voa até o limoeiro, nos espinhos as bolhas se espetam e lavam.
   O sol é claro e desliza pelas coisas, quieto.
   Sorri enquanto as roupas secam.
   Memória materna.
   Depois.
   Eu conheci um cachorro chamado Nicky.
   Entrou em casa como líder. Vontade dele sem verbo. Chorava debaixo da cama.
   Me falava de filosofia. Aquela que não se pensa. Ia direto ao centro, sem mais palavras. Desatava a coisa e sua sombra junto.
   E sabia que o melhor era o sono.
   Sonhei.