A avenida Jorge João Saad, aquela que vai dar no estádio...era um córrego. Não,não era, era mais que um córrego, era um riacho. Para ir à escola eu tinha de cruzar esse córrego. A ponte era um tronco de árvore caído. Passava correndo, sem olhar pra baixo. Quando chovia não ia, tudo alagava. A Giovanni Gronchi era uma estrada, não uma avenida. Estrada porque parecia não ser mais São Paulo. Asfaltada, era caminho para Itapecerica da Serra. Ao longo dela só eucaliptos. Florestas de eucaliptos. O cheiro forte, sempre frio. Som das folhas ao vento, chuva de folhas, sombras. Quilômetros de eucaliptos. Por toda a Giovanni só 3 construções: o estádio, o colégio americano e ao final a fábrica da Pullmann. Era engraçado. Após um tempão de árvores e cheiro de árvores, súbito, cheiro de bolo assando. Ao redor da Pullmann tinha sempre a marca dos bolos ao forno.
A avenida Morumbi era rua de travestis. Quando ela chegava junto a ponte do Brooklyn. "Moças" de minissaia faziam ponto nas calçadas. Era mais uma avenida de eucaliptos. Terrenos vazios, bosques e os travestis. Um nada completo. Algumas poucas mansões enormes. Sem muros. Se passeava para se ver as mansões.
Mas eu morava em outra parte. Na beira do Morumbi, perto de onde hoje é a TV Bandeirantes. Algumas ruas já tinham asfalto e nelas se andava de kart. A maioria era de terra. Poucas ruas. O bairro era uma confusão de terrenos baldios sem muro que se uniam a mais terrenos baldios. A gente podia andar em linha reta, cruzando dúzias de terrenos, terras que pareciam sem dono. Naquela parte do bairro não tinha eucalipto. Eram campos de capim e de mamona. E enormes cupinzais. A gente fazia guerra de mamona e cachimbos pra fazer bola de sabão. Na minha rua passava um carro a cada meia hora.
Lagoas a todo lado. Algumas com fundo de pedra. Meu primo nadava pelado. Pegava siri. Riachos cheios de peixinhos. Amarelos, eles nadavam contra a corrente e eu ficava doido de prazer em ver seus corpos claros na água com sol. Parecia um tipo de milagre. No fim da tarde tudo se lotava de sapos e rãs.
Cobras verdes, fininhas, andavam pelo capim. Enormes incêndios. O capim fazia um barulho legal quando queimava. Estourava. Cobras cegas quando a gente cavava junto ao cupinzal. Ela eram brancas e feias. Diziam que cuspiam no olho da gente. Ratos enormes. E gambás. Preguiças. Micos. Eu vi. E não faz tanto tempo assim.
Tinha uma bica onde a gente bebia água. E da frente da minha casa dava pra ver a avenida Paulista. De tarde a gente via o relógio do conjunto Nacional. Da porta da cozinha a gente via o pico do Jaguaré. Bem claro, verde, parecia perto. O Morumbi era lugar de se ver longe. E de escutar. Pássaros a semana toda e a torcida no estádio domingo de tarde.
Quando chovia era lama. Muita. E no inverno era muito frio. Nevoeiros que duravam o dia inteiro. Calor de cigarras e de gafanhotos. E eu juro, vacas que passavam de mansinho na frente do meu portão.
O que eu fazia? Eu olhava. Como eu olhava! Deitava junto a um abacateiro e ficava olhando nuvens. Elas se modificavam, voavam, paravam, iam-se. Quando surgia um avião era uma festa. Vóooooommm...e passava-se. Às vezes dava uma tristeza... a poesia já se avizinhava de mim. Eu sabia tudo tão lindo e ao mesmo tempo sabia que tudo passava.
Um dia achei em minhas andanças piso de cerãmica em meio ao mato. Restos de uma casa demolida desde quando? O muito velho deparou-se comigo. Ruínas. Uma coluna caída, um resto de porta.
Outro dia era a piscina onde flutuar era um tipo de nascer outra vez. Sabia na pele que tudo era ciclo. Mas acreditava sem pensar em crer que a árvore da minha tia era para sempre. Mudanças que mudavam sem passar.
O Morumbi era um campo de aprendizado. Aprendia a ver, a escutar, aprendia a pensar em ócio. Entendia o espaço.
2013 são 40 anos depois. E agora o eu que sou sabe que não existe vida sem espaço aberto, sem horizonte e sem poder ver o Jaguaré. Não existe vida sem cigarras e sem pontes pra cruzar. E a morte mora em muros altos e terrenos fechados.