OCTAVIO PAZ E O NOSSO "OUTRO"

   Entrei em minha primeira faculdade aos 20 anos. Era uma época em minha vida muito confusa. Lembro que eu amava Dostoievski, Heminguay e Philip Roth e era incapaz de ler poesia. Tinha a certeza absoluta da inexistência de Deus e exibia uma imensa arrogãncia ao dizer que o homem nada mais é que um erro da natureza. Mas em meio a todo esse narcisismo, eu me traía. Delirava em viagens psicodélicas, mergulhava na música de Mozart e tinha uma profunda comunhão com o mar. Havia uma contradição em mim. Eu vomitava frases de certeza e de não-transcendência, mas vivia em busca de transcendência e de encontrar aquilo que não tinha. Só e muito infeliz.
   Então escrevi na primeira aula de Português uma redação que deixou a professora impressionada. Ela havia posto o Bolero de Ravel para tocar e havia pedido para escrevermos sem pensar, sob o efeito da música. Escrevi algo sobre estar perdido no deserto, só, e então encontrar uma imagem que diz tudo no silêncio e se desfaz para sempre. A professora me chamou e disse que eu devia ler Octavio Paz. Agora, 30 anos depois, cito frases de O Arco e a Lira, obra-prima do grande mexicano.
  " Os estados de estranheza e reconhecimento, de repulsa e fascinação, de separação e união com o Outro, são também estados de solidão e de comunhão conosco mesmos. Aquele que realmente está a sós consigo, aquele que se basta em sua própria solidão não está só. A verdadeira solidão consiste em estar separado de seu ser, em ser dois. ......O homem anda desamparado, angustiado buscando esse outro que é ele mesmo. E nada pode fazê-lo tornar a si, exceto o salto mortal: o Amor, a Imagem, a Aparição.
   ....Os primeiros a perceber a origem comum do amor, da religião e da poesia foram os poetas. O pensamento moderno confiscou essa descoberta para seus fins. Para o niilismo contemporãneo poesia e religião são apenas formas de sexualidade: a religião é uma neurose, a poesia uma sublimação. Todas essas hipóteses denunciam o imperialismo do particular, característico das concepções do século XIX. Por que não pensar então que todas essas experiências têm por centro algo mais antigo que a sexualidade, a organização econômica ou social, ou qualquer outra "causa"?
   ....A nostalgia da vida anterior é pressentimento de vida futura. Mas uma vida anterior e uma vida futura que são aqui e agora e que se resolvem num instante relampejante.  Essa nostalgia e esse pressentimento são a substãncia de todo grande empreendimento humano, quer seja um poema, um mito religioso, uma utopia social ou um feito heróico. 
   Religião e Poesia tendem a realizar de uma vez para sempre essa possibilidade de ser que somos e que constitui nossa própria maneira de ser, ambas são tentativas de abraçar essa "outridade", que Antonio Machado chamava de essencial heterogeneidade do ser.  A experiência poética, como a religiosa, é um salto mortal: um mudar de natureza que é também um regressar a nossa natureza original. Encoberto pela vida prosaica ou profana, nosso ser de repente se recorda de sua identidade perdida, e então emerge, aparece esse outro que somos.
   A liberdade do homem se funda e se radica em não ser mais que possibilidade. Realizar essa possibilidade é ser, criar-se a si mesmo. O poeta revela o homem criando-o. ....Entre o nascer e o morrer a poesia nos abre uma possibilidade que não é a vida eterna das religiões nem a morte eterna das filosofias, mas um viver que envolve também morrer, um ser isto que é ser também aquilo.
   A poesia afirma que a vida humana não se reduz ao "preparar-se para morrer" de Montaigne, nem o homem "ser para a morte" dos existencialistas. A existência humana encerra uma possibilidade de transcender nossa condição: vida e morte, reconciliação dos opostos. Nietzsche dizia que os gregos criaram a tragédia por excesso de saúde. E assim é: somente um povo que vive a vida com total exaltação pode ser trágico, porque viver plenamente quer dizer viver também a morte. 
   A impossibilidade de achar uma resposta que explicasse realmente a criação poética, a inspiração, transforma-se, desde o século XVIII, numa condenação de ordem moral e estética. ...Inspiração passa a ser chamada de preguiça, descuido, amor pela improvisação, facilidade. DELIRIO E INSPIRAÇÃO passam a ser sinônimos de LOUCURA E ENFERMIDADE. O ato poético deve ser então trabalho e disciplina, luta contra a corrente. É a moral burguesa se assenhorando do campo estético."
   Cito esses trecho, poucos em meio a tantos. Ofereço-os a voces e espero que os entendam. O livro, imenso, é uma revolução, uma revelação. Ele ensina mais que ler bem. Mais que entender certo. Ele ajuda a viver, ele resgata, ele elucida. A cabeça de Octavio Paz deveria ter sido convertida em tesouro. Imorredoura.