A OUTRIDADE EM OCTAVIO PAZ, UM LIVRO DO CARAMBA!

   Todos os dias voce olha para a mesma rua e percebe a mesma coisa. Chega ao trabalho e faz as mesmas ações e tem pensamentos como os de sempre. Volta para casa com as mesmas sensações. E dorme tendo então os sonhos que desde sempre são seus. Mas um dia a rua lhe parece diferente. Aquela rua tão conhecida parece estranha. Assim como o carro e o trabalho. Voce percebe nas pessoas coisas antes não percebidas. Volta para casa e no espelho não reconhece mais seu rosto. Os sonhos serão outros. Voce está só diante do mundo. Absolutamente só. Eis o momento do salto mortal, da descoberta do outro, do conhecimento do vazio, do cair e ir adiante. É essa a outridade, mais que isso, é essa a condição verdadeira da vida. Nós não somos alguma coisa, não somos nem mesmo uma coisa, somos uma construção sempre sendo construída, somos o que seremos e não chegaremos a ser, somos um outro e nessa outridade somos tudo.
   Horror. A primeira sensação é o medo. Voce perde o ponto de apoio. As certezas se vão. O que era azul pode ser preto. O que era confiável torna-se enigma. Sem outra escolha voce dá o salto: Faz-se um outro e percebe que o homem é isso. Vem a felicidade inenarrável. Não somos uma cadeira, objeto que sempre será aquilo que é. Não somos um cavalo, ser que é sempre o mesmo. Somos um homem, um ser que nunca é, ele sempre será. Nesse momento de salto, nesse conhecimento do abismo e do nada, nascem três forças que guiam o ser: O amor, a religião e a poesia. Todas possuem a mesma origem, o nada e a mudança, cada uma age a seu modo. O amor reconhece o vazio e traz a mudança na forma de um encontro com um outro. Um outro que é a mudança que se faz em voce mesmo. A religião traz a elevação da vida e a anulação da individualidade na comunhão com algo maior que o ser, seja Deus seja o cosmos. A poesia traz a transformação do vazio em imagens, o nada se faz palavra, a experiência se traduz em texto, o texto será compartilhado pelo leitor que provará a experiência do autor. Em comum nas três, amor, religião e poesia, a estranheza perante o cotidiano, o horror original da não-fixidez, a transformação e o maravilhamento. O reconhecimento de que eu sou nada. Sou um outro. Que jamais será.
   O mundo da modernidade, aquele que nasce por volta de 1790, abomina tudo o que parece aristocrático. Ele ama o que é útil, o que trabalha em prol do todo. As coisas devem ter uma função, fazer parte de uma maquinária. Tudo deve ter um peso, uma realidade que possa ser avaliada e vendida. O que não se encaixar nesse maquinário será ignorado. Ou pior, será aberração. Será doença e com esse rótulo estará vendido.
   No amor, na religião e na poesia existe a inspiração. Um momento em que voce se deixa levar e faz, fala, age como nunca antes. Um outro surge em voce e o mais estranho é que esse outro "é mais voce que voce mesmo". Porque o sentido dessa outridade, dessa eterna mudança, desse salto mortal é o de fazer de voce cada vez mais voce-mesmo. Estranho: nesse salto para frente voce tem a sensação de voltar. Retorno a que? O tempo é abolido no amor, na religião e na poesia. Voce torna a ser o que foi. Mas esse passado nunca existiu. Forma-se um círculo: voce é seu amor, voce é Deus, voce é a poesia que voce faz mas que não é feita pelo eu de antes mas sim pelo novo-eu, um outro. Se a modernidade é uma reta rumo ao futuro, o amor, a religião e a poesia causam asco por serem círculos, negam a reta, se voltam para dentro, dão um salto adiante que é um retorno, vêem no futuro o passado que é presente. Sabem que a reta é uma armadilha que faz do homem um ponto da reta, um ponto que será fixo, acabado, pronto, util e esquecido.
   A modernidade irã chamar o amor de mero instinto de procriação. A religião de doença. E a poesia de sublimação. Rótulos que nada explicam. Apenas colocam um veredito e encerram o caso. Não importa o que é a poesia, o que não se explica é: como ela se faz. O que leva a mão a criar imagens, a fazer das palavras um instrumento de maravilhamento. Porque alguns "doentes" fazem poesia e outros nada fazem? Não seria o caso de se dizer que a vida "normal" é uma sublimação da poesia? Que a repulsa a religião seria a doença? Ou que o instinto sexual nega o amor?
   Houve um tempo em que a poesia era aceita como fato cotidiano. Dante recebia inspiração e naturalmente a aceitava. A questão era: como traduzir em palavras a inspiração? A partir da modernidade, pressionado pelo mundo utilitário, o poeta precisa justificar a inspiração. Ser um poeta deixa de ser um dom e passa a ser um problema a se resolver. O poeta se justifica. Toda a poesia moderna é uma justificação. O poeta tenta se explicar, se aceitar e ser aceito. Nega a inspiração, chama esse dom de "trabalho". Tenta ser um operário. Tenta transpirar. Nega a poesia.
   O mesmo se dá com o amor. Ele deixa de ser uma transformação e passa a ser uma conquista. A religião deixa de ser mistério sagrado e se faz regra de bem viver. Todas os três saltos mortais negam sua outridade, não propõe mais a transformação, passam a ser um tipo de pirotecnia do salto, um engodo.
   Neste mundo em crise, mundo tão frágil que nega a morte, a transformação e o todo, mundo que luta para ser claro, uniforme, planejado, o homem, esse ser em construção, ser que tem por condição a mudança, se vê sem amparo. Nega dentro de si o salto, a estranheza, o vazio e o nada. Com medo, foge daquilo que é na verdade a vida, a consciência do todo, de se ser um nada, um nada que luta para ser mais.
   Nascemos para nascer sempre. Nascendo morremos sempre. Somos a vida e somos a morte. Morremos todo dia, nascemos todo dia. Criamos, nos libertamos. E fazemos tudo outra vez. De outro modo, sempre. Sempre que é já. Que foi. Que será. E que passou.