AS AVENTURAS DE PI, FILME DE ANG LEE

   Ao contrário do que o pai de Piscine lhe tenta ensinar ( Tigres são diferentes de nós. Tenha medo. ), o jovem Piscine insiste em seu maravilhamento. Ele ama a vida e esse amor o leva a curiosidade. Dentre as várias maravilhas do mundo, nada tem um caráter tão maravilhoso: Deus. Ele passa então a procurar Deus. Onde? Nas religiões. E lá se vai o jovem inquieto na busca por maravilhamento. Mas a pressão da familia, a cobrança por coerência lhe entristece. Eis um momento importante: A vida perde seu encanto, o tédio se impõe. Piscine está pronto para ser "mais um".
   No belo livro de Yann Martel, toda essa primeira parte ocupa quase metade da narrativa. E é a melhor. Com soberbo humor e sabendo fugir do clima "auto-ajuda", voce lê tudo isso com prazer e surpresa. Os animais passam a ocupar o lugar de Deus na vida de Piscine. E vem a saga.
   Ang Lee é um dos melhores diretores vivos. Mas não é David Lean. Com todos os recursos digitais, ele não dá ao mar o que Lean deu ao deserto. O oceano de Lee é lindo, o deserto em Lawrence da Arábia era aterrador. Cada tomada de David Lean era entrada no sagrado ( como foi também o espaço em 2001 de Kubrick, para mim, o melhor dos filmes religiosos ), cada tomada de Ang Lee é apenas Disney. E que belo Disney!!! O vôo dos peixes-voadores já é uma cena clássica.
   A história é narrada para um escritor sem inspiração. E ao final ele dirá que Richard Parker, o tigre, era Piscine. Mas então quem era Piscine?
   Conhecendo alguma coisa de poesia inglesa a gente logo percebe que existem cinco poemas centrais no idioma. Aqueles que todo estudante mediano conhece. Ode ao Vento Oeste, Ao Rouxinol, Se... e de William Blake temos The Tyger ( na grafia antiga com um Y ). O poeta vê o tigre e hipnotizado sente que aquela imagem é mais do que um bicho: pode ser Deus. É impossível Yann Martell não conhecer esse poema. Ele já foi citado centenas de vezes em filmes e até em música pop. Pois bem...
   O tigre se vai na mais bela cena do filme ( e a única que me emocionou ). Com sua missão cumprida, uma terrível missão, pois o Tigre que salvou Piscine também poderia tê-lo matado ( O que não me mata me fortalece ), ele desaparece na floresta e não deixa rastros. Vem então a chave do filme: Qual a história verdadeira?
   Desde a muito eu sei que exsitem dois tipos de espirito. E saiba que eu vivo/vivi ambos. Existe gente que olha o mar e vê água e sal. E um monte de bichos. São simplificadores, sempre diminuem tudo, inclusive a si-mesmos.  Existe gente que olha o mar e vê o infinito. E trilhões de caminhos. Mais que isso, vê um mistério SEM POSSIBILIDADE DE RESPOSTA. Portanto, mesmo não admitindo, essa pessoa vê Deus no mar. Já o outro, míope, só consegue perceber o óbvio, água e sal.
   Piscine diz ao ouvinte que a história o fará crer em Deus. E muita gente se decepciona pois o ouvinte não vê uma prova de Deus. Mas não é caso de julgamento, é uma questão de ESCOLHA. Ao optar pela história de Richard Parker e não pela do cozinheiro louco, o ouvinte está se abrindo ao maravilhoso, ao além do banal, a Deus portanto. Ele não crê em Deus, mas tem uma porta aberta a Sua possibilidade.
   Dito isso o que desejo deixar claro é que acredito na religião da BELEZA, e fico entristecido e com pena daqueles que só conseguem ver a fealdade na vida. O senso de beleza pode salvar uma vida, dar dignidade a dor, dar sentido ao caminho. O maravilhamento de Piscine com Richard Parker abre seus olhos a beleza inenarrável de sua saga. E na morte em vida ele encontra a Ilha que lhe dá outra-nova vida. Sua tragédia é um reencontro com a liberdade da infância, a curiosidade e a busca.
   Tenho amigos que vivem comigo nesse Oceano. Tenho outros amigos que só querem ver o cozinheiro louco, a água e o sal, o tigre sem nome. É sempre uma questão de QUERER CRER.
   O melhor filme de Ang Lee continua sendo sua magnífica versão de RAZÃO E SENSIBILIDADE de Jane Austen, mas este filme é uma obra de coragem e de simplicidade invulgar.
   Um PS: É dito no filme que os Super-Heróis são os deuses-indianos de hoje. Sempre repito isso, nossa necessidade, humana, de transcendência nos faz adotar heróis, gurus, profetas e curandeiros, mesmo os mais medíocres. Richard Parker me parece um bom tipo de transcendência. Parker não dá nada com facilidade, não banaliza as coisas, nunca se vende. É uma força que tem de ser entendida, compreendida e aceita. Nisso reside sua beleza.