Alberto nasceu em 1950 e trabalhou/trabalha na Globo, Band e SBT. Escreveu este delicioso livro sobre seu mundo. Mundo que ele confessa ter morrido a algumas décadas. Nada de chororô. Há saudade mas há muito mais alegria. Ter conhecido esse mundo é uma felicidade guardada no coração.
O mundo que ele recorda morreu porque não é o mundo da alta cultura ou da grande história. Sejamos francos, o mundo de Plato ou de Proust está vivo. Mas o mundo de que Alberto fala, mundo de brinquedos, de aparelhos e de comidas, esse morreu. Então ele dá uma página para cada lembrança.
Invejoso, dou aqui as minhas lembranças. Guiado pelas dele.
PS: Quem nasceu após 1970 não saberá do que falo. Ou saberá?
O cheiro do Vick Vaporub, que era emplastrado em meu peito para curar minha bronquite. Eu dormia de paletó de flanela e o Vick grudava no tecido. Ao lado, sobre o criado-mudo, o lenço de pano, azul e branco. Eu nunca estava sem um lenço de pano à mão.
Os vizinhos vindo em casa ver TV. A TV só valia a pena se fosse vista em grupo. Assistir Tv a sós era coisa de maluco. Domingos vinham meus primos ver Roberto Carlos e Hebe. Durante a semana vinha Dona Mabilia, ver novela. A molecada via National Kid e Ultraman.
Mabilia...existem nomes extintos. Valdir, Moacir, Luiz Carlos, Sandra, Maria da Conceição, Roberval, Juscelino, Ivo, Jurandir, Alaor, Benedita, Margareth e Margarida. Noémia e Nelson. Péricles e Roseli. Hoje é tudo Lucas, Gustavo, Tiago e Gabriel. E aquele monte de nomes estrangeiros de araque. Ah! e tem os sofisticados chic que ousam um Joaquim e uma Valentina.
Tv em móveis de madeira, brilhando e perfumada com lustra-móveis Shell.
Toda casa tinha baratas, muitas e pra matar se usava Flit. Para os pernilongos tinha uma cobrinha verde. A gente acendia a ponta e ela ia queimando e soltando cheiro ruim. Não funcionava, mas a gente usava... Pulgas na cama. Colchão de palha. Cheguei a dormir em colchão de palha e ter pulgas no lençol. Ainda existem pulgas?
Bicicleta com espelinho retrovisor e borrachas de paralamas. Pedalar usando um Bamba preto. Eu tive um branco também. Acho que até hoje foi o melhor tênis que usei.
Tinha um indio Apache que ficava na tela da TV antes de ela "abrir". A TV fechava às 2 da manhã e abria às 10. As pessoas dormiam e os funcionários descansavam...
Colar figurinhas com goma arábica, uma cola com pincel, de cheiro forte e que deixava as figuras enrugadas. Quem era mais pobre fazia cola. Farinha e água. Meus primos faziam pipas assim. E funcionava. Engraçado, era um tempo em que dava pra ficar uma semana sem gastar um centavo.
Eu ia de pasta de couro pra escola. E calça cinza de tergal com camisa branca de abotoar. O distintivo da escola no bolso. Costurado. Sapatos pretos Vulcabrás. As meninas de saia xadrez cinza e camisa branca. Meias 3/4. Atenção, era uma escola do estado. Camiseta e short nem pensar.
"Este é Renato, esta é Cecilia. Renato e Cecilia são irmãos". É a primeira frase que li e escrevi na vida. Daí à Yeats e Homero foi um nadinha de tempo....
Um homem de terno e gravata vinha vender enciclopédias. Eu pirava! Foi ali que nasceu meu amor aos livros. Ele vinha sexta e deixava um dos volumes em casa até segunda. Se a gente gostasse, comprava tudo. Meu pai comprou um monte: Ler e Saber, Barsa, Do Estudante.... Eu lia quase tudo. Adorava ler as coisas sobre os reis do passado, vidas de escritores e pintores e sobre bichos. Nada mudou. Ler sobre Adolfo I, Pascal e o jaguar ainda me fascina.
Nas bancas eu ganhava Recreio. E aos nove anos comecei a ler Clássicos da Juventude. A Ilha do Tesouro, O Conde de Monte Cristo, Tom Sawyer e vasto etc. E ainda colecionava os fascículos de Conhecer e Os Bichos.
O pai de meu melhor amigo escrevia a máquina em casa. Lembro de entrar correndo na casa dele e ver o pai escrevendo. Toda vez que ele ia teclar um ç ele me chamava para teclar. Tléc. Eu ficava todo-todo...Achava a mulher dele ( Meire ) a coisa mais linda do mundo! Engraçado....teclar e amar uma nova Meire....O que mudou?
Sentar numa lata de arroz para cortar o cabelo. O barbeiro botava essa latona na cadeira, para eu ficar mais alto. Eu odiava cortar o cabelo. Hoje não preciso mais cortar...
Os ovos eram chocados e eu ia ver, com toda a familia, os pintinhos quebrarem a casca. Piu, piu, piu... Toda casa produzia alguma coisa. Tempo de quintais, a gente tinha abundãncia de limão, couve, alface, ovos, galinhas, coelhos, banana e almeirão. Ah...e tinha uma parreira que nunca deu uva. Eu cansei de ver galinha ser morta na cozinha. Adorava ver as tripas quentes e cheirosas. Era um tempo em que na feira se vendia o bicho vivo, pra matar em casa. Trocas com vizinhos: Pode pegar as laranjas, leva este mamão, tome esses ovos...
Minha mãe vivia costurando alguma coisa. A linha corria na máquina de costura. Aliás, toda casa tinha máquina de costura, enceradeira...se encerava até o terraço! Um cheiro de cêra maravilhoso!
Não se comprava roupa. Isso era coisa de quem era muito pobre. Se mandava fazer. Minha mãe escolhia o tecido, o modelo e mandava fazer sob medida. Toda casa tinha seu alfaiate e sua costureira. Menos empregos no mundo, o que fazem hoje os alfaiates? ....existia até a lavadeira!
Leite em garrafa de vidro, com nata grossa. O leite dormia na rua, de madrugada, e ninguém pegava. A garrafa era devolvida pela garrafa cheia. O primeiro emprego de meu pai foi esse: entregador de pão e de leite. De carroça, em Santo Amaro, 1950.
Anos depois ele voltava do trabalho às 3 da tarde. E todo dia me dava 25 centavos. Eu corria à "venda do seu Roque" para comprar doces. Coração de Abóbora, Passoca, Pé de Moleque, Maria Mole, e meu favorito: um tipo de sanduiche de Maria Mole com duas bolachas Maizena. Os doces ficavam num armário de vidro, era só pegar. Nessa venda tinha de regadores e vassouras à feijão e óleo. Grande balcão de madeira e pedra, a escada para subir ás prateleiras mais altas, o menino de bicicleta que fazia as entregas a domicilio.
Todo dia meu pai me dava um cálice de Biotônico Fontoura. E aos sábados fazia uma vitamina: ovo crú, açúcar e uma garrafinha de Caracú. Tudo batido no liquidificador. Era bom pra caramba, mas hoje eu não teria estômago. Tempos incorretos.
Fotonovela era um tipo de HQ romântico, mas tinha fotos de atores e não desenhos. Minha tia lia. Eu coloria álbuns dos Flintstones. E adorava aqueles estojos de madeira onde vinham lápis, lapiseira, borracha, caneta, esquadro, apontador....
A professora carimbava nossos cadernos com figuras de histórias de fadas. Quanto melhor aluno, mais carimbos. Meu irmão tinha um monte!
Sempre adorei andar na chuva. Já com 7 anos eu tinha minha capa de chuva. Cinza, até os pés, abotoada com grandes botões verdes. E meu guarda-chuva preto. Até hoje sinto vergonha de confessar, mas eu adoro umbrellas! Chovia muito, garoava toda manhã, neblinas de cegar. No calor da sala, vendo Os 3 Patetas na TV, parecia que minha casa era a única do mundo. Era.
Um fusca vermelho de lata. Eu entrava nele e pedalava. Tinha farol a pilha e buzina. Brinquedos eram pra se mexer. Tive uma armadura medieval de plástico, elmo, escudo e espada. Um trem à pilha, vários Fort Apache. De madeira, com indios a cavalo e a cavalaria com sabres. Ainda sinto o cheiro da madeira pintada. Uma cidade do Western. Com cocheiras, saloon, carroças, casa do xerife. Toda de madeira, enorme. Minha bicicleta era vermelha, Caloi.
Eu estava deitado no quarto escuro e a porta se abriu. Em meio ao escuro, uma luz branca e uma buzina. Meus pais entravam no quarto, de surpresa, e me davam o Fusca! Eu tremia de alegria.
Todo dia eu via O Pimentinha, Os Monkees e Coelho Pernalonga. A TV me hipnotizava. Eu prestava atenção em tudo, até em jornal que não entendia. Topo Gigio, Sessão das Três, Jambo e Ruivão, Circo do Arrelia, Corrida Maluca e Speed Racer.
A carrocinha passava e levava todos os cachorros pra virar sabão. A gente sabia, sabão de lavar roupa era cachorro morto. O Phebo preto tinha cheiro forte de cãnfora e ardia na pele. Eu tomava banho dia sim dia não ( confesso, eu era um porquinho ), sempre encardido, minha mãe me esfregava com esponja de cozinha até ficar vermelho. Eu juro que não é só o Phebo que mudou. O Toddy em vidro gordo e escuro cheirava melhor, tinha mais sabor e o bolo Pullman ( sabor Califórnia ) era uma delicia!!! Será fantasia? Mas eu sinto agora o cheiro e o gosto na memória, e percebo que mudou. Basta dizer que abrir uma lata de café era cheiro se espalhando até no vizinho....
Jogo de botões....Flamengo. Com Ubirajara no gol. Reyes na zaga. Fio no ataque. Tinha um do Corinthians com Tião e Rivellino. Eu era palmeirense, Ademir e Leivinha, Leão e Dudu. Mas meu pai me deu uma bola Pelé e virei Pelé. Eu torcia era pelo Pelé.
Câncer de pele? Que? A gente ia pra praia pra se bronzear. Passava Coppertone, que não protegia nada, bronzeava. É aquele com a bundinha da Jodie Foster no rótulo.
O primeiro refrigerante que tomei na vida: Crush. E eu amava Neston ( outro que mudou de gosto ), leite em pó ( comido seco ) e pão doce de padaria. Ovo cozido com gema mole, linguiça fininha bem passada, marmelada de lata, lamber o tacho de fazer bolo...
Alguém lembra das colchas de Chenille??? Dos biscoitos Duchen? Piraquê? Aymoré? Cadê?
Eu tinha uma japona azul marinho e meu pai sintonizava o rádio em ondas curtas. Era pra pegar rádios distantes. Uma vez conseguimos pegar a BBC. Mas normalmente pegava o Paraguay e a gente ficava ouvindo guaranias...
Com um jornal se fazia um chapéu de soldado e com uma folha de caderno um barco. Chovia e eu corria pra lançar os barcos na exurrada. Tive meu estojo de quimica. Tubos de ensaio e liquidos coloridos. Eu queria fazer com eles um monstro japonês. Sábados íamos à bica pegar água. Eram pesados os garrafões de vidro cobertos com palha. Será que não tinha água encanada no Morumbi? Mas o banho não era com chuveiro? Mistério...
A festa junina era em casa. Fogueira onde meu irmão queimou o pé. Balão. Quentão. Tive calça rancheira e calça de brim. Calça rancheira era a calça de Far west. Do rancho. Eu gostava era da calça de brim e de blusas de gola "olimpica". Olimpica era a gola rulê. Aliás vamos falar a verdade, eu era vaidoso pra caramba! Tanto me chamavam de principe quando fui criança que cresci pensando ser o Ronnie Von.
Quando meu pai morreu, em 2008, eu comprei Aqua-Velva pra sentir o cheiro dele. Decepção! A Aqua-Velva não tem mais cheiro! Virou um vidrinho de plástico, sem cheiro e sem cor. Será que o mundo realmente acabou?
Ainda existem bobs de cabelo, papel carbono, mamadeira de vidro, naftalina, velha de luto com véu no rosto, Van Ess, Modess, Colorama? Filtro de barro, pinico de louça e cristaleira?
Enquanto eu viver, voce viver, este mundo que não morreu, estará vivo. Mundo do quase nada, do insignificante, dos bloquinhos de montar, dos pinos mágicos, bolinhos de chuva e drops Dulcora. Mundo pequeno que dá luz ao mundo grande. Pequenês que teima em ser tudo. Que bom!!!!
O mundo que ele recorda morreu porque não é o mundo da alta cultura ou da grande história. Sejamos francos, o mundo de Plato ou de Proust está vivo. Mas o mundo de que Alberto fala, mundo de brinquedos, de aparelhos e de comidas, esse morreu. Então ele dá uma página para cada lembrança.
Invejoso, dou aqui as minhas lembranças. Guiado pelas dele.
PS: Quem nasceu após 1970 não saberá do que falo. Ou saberá?
O cheiro do Vick Vaporub, que era emplastrado em meu peito para curar minha bronquite. Eu dormia de paletó de flanela e o Vick grudava no tecido. Ao lado, sobre o criado-mudo, o lenço de pano, azul e branco. Eu nunca estava sem um lenço de pano à mão.
Os vizinhos vindo em casa ver TV. A TV só valia a pena se fosse vista em grupo. Assistir Tv a sós era coisa de maluco. Domingos vinham meus primos ver Roberto Carlos e Hebe. Durante a semana vinha Dona Mabilia, ver novela. A molecada via National Kid e Ultraman.
Mabilia...existem nomes extintos. Valdir, Moacir, Luiz Carlos, Sandra, Maria da Conceição, Roberval, Juscelino, Ivo, Jurandir, Alaor, Benedita, Margareth e Margarida. Noémia e Nelson. Péricles e Roseli. Hoje é tudo Lucas, Gustavo, Tiago e Gabriel. E aquele monte de nomes estrangeiros de araque. Ah! e tem os sofisticados chic que ousam um Joaquim e uma Valentina.
Tv em móveis de madeira, brilhando e perfumada com lustra-móveis Shell.
Toda casa tinha baratas, muitas e pra matar se usava Flit. Para os pernilongos tinha uma cobrinha verde. A gente acendia a ponta e ela ia queimando e soltando cheiro ruim. Não funcionava, mas a gente usava... Pulgas na cama. Colchão de palha. Cheguei a dormir em colchão de palha e ter pulgas no lençol. Ainda existem pulgas?
Bicicleta com espelinho retrovisor e borrachas de paralamas. Pedalar usando um Bamba preto. Eu tive um branco também. Acho que até hoje foi o melhor tênis que usei.
Tinha um indio Apache que ficava na tela da TV antes de ela "abrir". A TV fechava às 2 da manhã e abria às 10. As pessoas dormiam e os funcionários descansavam...
Colar figurinhas com goma arábica, uma cola com pincel, de cheiro forte e que deixava as figuras enrugadas. Quem era mais pobre fazia cola. Farinha e água. Meus primos faziam pipas assim. E funcionava. Engraçado, era um tempo em que dava pra ficar uma semana sem gastar um centavo.
Eu ia de pasta de couro pra escola. E calça cinza de tergal com camisa branca de abotoar. O distintivo da escola no bolso. Costurado. Sapatos pretos Vulcabrás. As meninas de saia xadrez cinza e camisa branca. Meias 3/4. Atenção, era uma escola do estado. Camiseta e short nem pensar.
"Este é Renato, esta é Cecilia. Renato e Cecilia são irmãos". É a primeira frase que li e escrevi na vida. Daí à Yeats e Homero foi um nadinha de tempo....
Um homem de terno e gravata vinha vender enciclopédias. Eu pirava! Foi ali que nasceu meu amor aos livros. Ele vinha sexta e deixava um dos volumes em casa até segunda. Se a gente gostasse, comprava tudo. Meu pai comprou um monte: Ler e Saber, Barsa, Do Estudante.... Eu lia quase tudo. Adorava ler as coisas sobre os reis do passado, vidas de escritores e pintores e sobre bichos. Nada mudou. Ler sobre Adolfo I, Pascal e o jaguar ainda me fascina.
Nas bancas eu ganhava Recreio. E aos nove anos comecei a ler Clássicos da Juventude. A Ilha do Tesouro, O Conde de Monte Cristo, Tom Sawyer e vasto etc. E ainda colecionava os fascículos de Conhecer e Os Bichos.
O pai de meu melhor amigo escrevia a máquina em casa. Lembro de entrar correndo na casa dele e ver o pai escrevendo. Toda vez que ele ia teclar um ç ele me chamava para teclar. Tléc. Eu ficava todo-todo...Achava a mulher dele ( Meire ) a coisa mais linda do mundo! Engraçado....teclar e amar uma nova Meire....O que mudou?
Sentar numa lata de arroz para cortar o cabelo. O barbeiro botava essa latona na cadeira, para eu ficar mais alto. Eu odiava cortar o cabelo. Hoje não preciso mais cortar...
Os ovos eram chocados e eu ia ver, com toda a familia, os pintinhos quebrarem a casca. Piu, piu, piu... Toda casa produzia alguma coisa. Tempo de quintais, a gente tinha abundãncia de limão, couve, alface, ovos, galinhas, coelhos, banana e almeirão. Ah...e tinha uma parreira que nunca deu uva. Eu cansei de ver galinha ser morta na cozinha. Adorava ver as tripas quentes e cheirosas. Era um tempo em que na feira se vendia o bicho vivo, pra matar em casa. Trocas com vizinhos: Pode pegar as laranjas, leva este mamão, tome esses ovos...
Minha mãe vivia costurando alguma coisa. A linha corria na máquina de costura. Aliás, toda casa tinha máquina de costura, enceradeira...se encerava até o terraço! Um cheiro de cêra maravilhoso!
Não se comprava roupa. Isso era coisa de quem era muito pobre. Se mandava fazer. Minha mãe escolhia o tecido, o modelo e mandava fazer sob medida. Toda casa tinha seu alfaiate e sua costureira. Menos empregos no mundo, o que fazem hoje os alfaiates? ....existia até a lavadeira!
Leite em garrafa de vidro, com nata grossa. O leite dormia na rua, de madrugada, e ninguém pegava. A garrafa era devolvida pela garrafa cheia. O primeiro emprego de meu pai foi esse: entregador de pão e de leite. De carroça, em Santo Amaro, 1950.
Anos depois ele voltava do trabalho às 3 da tarde. E todo dia me dava 25 centavos. Eu corria à "venda do seu Roque" para comprar doces. Coração de Abóbora, Passoca, Pé de Moleque, Maria Mole, e meu favorito: um tipo de sanduiche de Maria Mole com duas bolachas Maizena. Os doces ficavam num armário de vidro, era só pegar. Nessa venda tinha de regadores e vassouras à feijão e óleo. Grande balcão de madeira e pedra, a escada para subir ás prateleiras mais altas, o menino de bicicleta que fazia as entregas a domicilio.
Todo dia meu pai me dava um cálice de Biotônico Fontoura. E aos sábados fazia uma vitamina: ovo crú, açúcar e uma garrafinha de Caracú. Tudo batido no liquidificador. Era bom pra caramba, mas hoje eu não teria estômago. Tempos incorretos.
Fotonovela era um tipo de HQ romântico, mas tinha fotos de atores e não desenhos. Minha tia lia. Eu coloria álbuns dos Flintstones. E adorava aqueles estojos de madeira onde vinham lápis, lapiseira, borracha, caneta, esquadro, apontador....
A professora carimbava nossos cadernos com figuras de histórias de fadas. Quanto melhor aluno, mais carimbos. Meu irmão tinha um monte!
Sempre adorei andar na chuva. Já com 7 anos eu tinha minha capa de chuva. Cinza, até os pés, abotoada com grandes botões verdes. E meu guarda-chuva preto. Até hoje sinto vergonha de confessar, mas eu adoro umbrellas! Chovia muito, garoava toda manhã, neblinas de cegar. No calor da sala, vendo Os 3 Patetas na TV, parecia que minha casa era a única do mundo. Era.
Um fusca vermelho de lata. Eu entrava nele e pedalava. Tinha farol a pilha e buzina. Brinquedos eram pra se mexer. Tive uma armadura medieval de plástico, elmo, escudo e espada. Um trem à pilha, vários Fort Apache. De madeira, com indios a cavalo e a cavalaria com sabres. Ainda sinto o cheiro da madeira pintada. Uma cidade do Western. Com cocheiras, saloon, carroças, casa do xerife. Toda de madeira, enorme. Minha bicicleta era vermelha, Caloi.
Eu estava deitado no quarto escuro e a porta se abriu. Em meio ao escuro, uma luz branca e uma buzina. Meus pais entravam no quarto, de surpresa, e me davam o Fusca! Eu tremia de alegria.
Todo dia eu via O Pimentinha, Os Monkees e Coelho Pernalonga. A TV me hipnotizava. Eu prestava atenção em tudo, até em jornal que não entendia. Topo Gigio, Sessão das Três, Jambo e Ruivão, Circo do Arrelia, Corrida Maluca e Speed Racer.
A carrocinha passava e levava todos os cachorros pra virar sabão. A gente sabia, sabão de lavar roupa era cachorro morto. O Phebo preto tinha cheiro forte de cãnfora e ardia na pele. Eu tomava banho dia sim dia não ( confesso, eu era um porquinho ), sempre encardido, minha mãe me esfregava com esponja de cozinha até ficar vermelho. Eu juro que não é só o Phebo que mudou. O Toddy em vidro gordo e escuro cheirava melhor, tinha mais sabor e o bolo Pullman ( sabor Califórnia ) era uma delicia!!! Será fantasia? Mas eu sinto agora o cheiro e o gosto na memória, e percebo que mudou. Basta dizer que abrir uma lata de café era cheiro se espalhando até no vizinho....
Jogo de botões....Flamengo. Com Ubirajara no gol. Reyes na zaga. Fio no ataque. Tinha um do Corinthians com Tião e Rivellino. Eu era palmeirense, Ademir e Leivinha, Leão e Dudu. Mas meu pai me deu uma bola Pelé e virei Pelé. Eu torcia era pelo Pelé.
Câncer de pele? Que? A gente ia pra praia pra se bronzear. Passava Coppertone, que não protegia nada, bronzeava. É aquele com a bundinha da Jodie Foster no rótulo.
O primeiro refrigerante que tomei na vida: Crush. E eu amava Neston ( outro que mudou de gosto ), leite em pó ( comido seco ) e pão doce de padaria. Ovo cozido com gema mole, linguiça fininha bem passada, marmelada de lata, lamber o tacho de fazer bolo...
Alguém lembra das colchas de Chenille??? Dos biscoitos Duchen? Piraquê? Aymoré? Cadê?
Eu tinha uma japona azul marinho e meu pai sintonizava o rádio em ondas curtas. Era pra pegar rádios distantes. Uma vez conseguimos pegar a BBC. Mas normalmente pegava o Paraguay e a gente ficava ouvindo guaranias...
Com um jornal se fazia um chapéu de soldado e com uma folha de caderno um barco. Chovia e eu corria pra lançar os barcos na exurrada. Tive meu estojo de quimica. Tubos de ensaio e liquidos coloridos. Eu queria fazer com eles um monstro japonês. Sábados íamos à bica pegar água. Eram pesados os garrafões de vidro cobertos com palha. Será que não tinha água encanada no Morumbi? Mas o banho não era com chuveiro? Mistério...
A festa junina era em casa. Fogueira onde meu irmão queimou o pé. Balão. Quentão. Tive calça rancheira e calça de brim. Calça rancheira era a calça de Far west. Do rancho. Eu gostava era da calça de brim e de blusas de gola "olimpica". Olimpica era a gola rulê. Aliás vamos falar a verdade, eu era vaidoso pra caramba! Tanto me chamavam de principe quando fui criança que cresci pensando ser o Ronnie Von.
Quando meu pai morreu, em 2008, eu comprei Aqua-Velva pra sentir o cheiro dele. Decepção! A Aqua-Velva não tem mais cheiro! Virou um vidrinho de plástico, sem cheiro e sem cor. Será que o mundo realmente acabou?
Ainda existem bobs de cabelo, papel carbono, mamadeira de vidro, naftalina, velha de luto com véu no rosto, Van Ess, Modess, Colorama? Filtro de barro, pinico de louça e cristaleira?
Enquanto eu viver, voce viver, este mundo que não morreu, estará vivo. Mundo do quase nada, do insignificante, dos bloquinhos de montar, dos pinos mágicos, bolinhos de chuva e drops Dulcora. Mundo pequeno que dá luz ao mundo grande. Pequenês que teima em ser tudo. Que bom!!!!