A AURA DE WALTER BENJAMIN

   Os homens andavam durante dias para ver uma pintura numa igrejinha em cidadezinha da Toscana. Olhavam, e sabiam que apenas lá, naquele lugar havia a chance de ter tal experiência. O ambiente da igreja, seu clima e seu lugar eram parte da experiência. Ao ir embora o homem sabia que não teria essa visão em nenhum outro lugar. Aquela visão era carregada viva na memória.
   Os homens iam ver Beethoven reger ou Schubert tocar. E sabiam que não escutariam a sexta ou a quinta em nenhum outro lugar. Eles escutavam e tiravam daquele momento o máximo possível. Era um momento único na história de uma vida.
   É disso que fala Benjamim, da aura. Por mais distante que um artista ou uma obra pareça do mundo da aura, toda manifestação artística traz em-si a herança de algo que foi criado como manifestação religiosa. Fazer arte é tentar sair do cotidiano, do aparente e óbvio e procurar criar uma visão original, única, transcendente. Por mais biológico ou corporal que um artista seja ele no fundo é herdeiro dessa tradição humana. Mas, e é essa a sacada de Benjamin, uma arte que pode ser levada pra casa perde completamente sua aura. Deixa de ser um tipo de experiência única e particular e passa a ser produto consumível e sem nada de sagrado ou secreto. Explico.
   Quando criança nunca esqueço de uma manhã em que perdido no Morumbi, encontrei em meio a um capinzal, restos de cerâmica no chão. Em meio ao mato eu achei desenhos geométricos no chão. Meus desenhos, vistos só por mim, escondidos lá para mim. A sensação que tive foi de desvendamento de um segredo.
   Na adolescência lembro dos primeiros clips que chegavam ao Brasil. Queen, Stones, Floyd...Todos me emocionava e eu achava que só eu os conhecia e só eu assistia. Mais que tudo, não existiam videos do Led Zeppelin. Espertamente, eles não se deixavam filmar. Formava-se um mistério, imaginávamos como seria o Led em movimento, eis a aura de Benjamin. Quem os assistia ao vivo sabia que aquilo era só para eles. Não seria gravado, transmitido ou vendido. O Led ali, sobre o palco era experiência só do público fã. Os Smiths no começo fizeram o mesmo.
   Um livro com aura é um livro que voce pensa que só voce o lê. Filmes censurados e proibidos tinham essa aura e vê-los finalmente liberados era uma sessão religiosa. Poder ver O Atalante de Jean Vigo, filme pouco conhecido e pouco visto,  foi uma experiência de aura. Eu sentia que só eu em todo o mundo o amava.
   A aura se cria quando há um sentimento de intimidade entre voce e a obra. Quando voce sente que ela é sua, completamente sua, e que então ela passa a fazer parte de voce. E principalmente quando há um sacrifício para vê-la, um momento decisivo, ou voce vê ali e agora ou nunca mais.
   Havia aura na dificuldade em se ver um Mizoguchi ou um Cocteau. No Dante que li numa cabana no mato. Naquele video em super 8 de Woodstock.
   O que pode haver de aura num filme com mil cópias e dez milhões de olhos? Em pilhas de Dickens recém reeditado? No cd de Schubert tocado no carro e escutado no dentista? Que arte sobrevive a Van Gogh em calendários e Mozart em filminho de arte? Que aura pode haver em coisas baixadas aos milhões? Fáceis e desvendadas, sem segredos e sem a experiência do intimo?
   O meu disco raro do Velvet Underground atingiu 12 milhões de visualizações. Não é mais o meu Velvet. Nunca mais será. É do mundo. É real e corriqueiro. Continua maravilhoso como sempre foi, mas sem aura, sem mistério e sem o amargo/doce gosto do único. São milhões de ouvintes, milhões de opiniões, milhões de audições.
   Aura? Nunca mais.