A FÉ DOS ATEUS

"O homem está numa armadilha...e a bondade de nada lhe vale na nova ordem. Ninguém mais liga para isso. Bem e mal, pessimismo e otimismo- são uma questão de grupo sanguineo, não de disposição angélica. Quem algum dia se interessava e cuidava de nós, quem se preocupava com nosso destino e o do mundo, foi substituido por outro que se regozija com nossa servidão á matéria e às mais baixas partes de nossa natureza."
Lawrence Durrell.
Durrell foi um escritor terrível. Se voce não o conhece, não pense que se trata de um autor bonzinho. Ao contrário. Ele escrevia livros sobre o seco desespero, sobre sexo, sobre o absoluto vazio. Se quiser o conhecer leia "O Quarteto de Alexandria", saga composta de 4 livros. Foram escritos nos anos 40/50. Nesta nossa época de absoluta covardia, em que nossos escritores se conformaram com suas "questões miúdas", Durrell, como Bernanos e Camus, se dava questões espinhosas. Viajante incansável, ele procurava respostas. E tinha a grande consciência de que procurar essas respostas era a própria resposta.
Valentino foi um cristão herege do século III. Perseguido pela igreja, seus passos foram apagados da história no século VII. O dogma cristão não pode conviver com a tradição que Valentino revivia. Uma tradição que é a alma da religião do mundo de hoje. Mesmo os ateus a seguem sem o saber. Louca contradição, na época da tecnologia, tudo o que fazemos, sem saber, é nos aproximar da mais antiga das religiões do ocidente. O trágico é que por não ter consciência desse movimento, nossa aproximação é pobre. superficial, oca. Mas real, verdadeira e ansiosa. Vejamos.
Valentino falava de uma tradição que vinha de Zarathustra, figura histórica do Irã de cerca de 2000 a/c. O que Valentino disse que fez dele um herege foi que Deus não é anterior ao homem. Temos uma centelha divina que é eterna tanto como Deus. Ele não a criou, existe com ela. Em nós há uma alma que é tola como a carne, e esse "eu interior", eterno e personalisado, habitante do mais profundo centro de nosso ser, fagulha que justifica nossa existência.
Se voce é só um pouquinho esperto já notou onde está o pensamento que faz com que essa seja a fé desta nossa época. Tudo em nosso mundo é a procura dessa fagulha. E essa é uma particularidade que nasce na renascença e atinge seu apogeu agora. O homem olhando para dentro de si-mesmo, se fazendo cada vez mais solitário, entretido nessa busca por sentido, por razão, por luz. Empreendendo viagens de conhecimento, experimentos mentais, análises psiquicas, meditações, tentativas de se encontrar. Gente que não segue uma igreja, um dogma, um programa, mas que intuitivamente tateia a procura de algo dentro de si. É a religião dos intelectuais, dos insatisfeitos, e que existe até mesmo nos ateus. A vontade obssessiva de conhecimento, de um conhecimento que vive dentro e não fora daquele que procura. Nada de novo, esse desejo mistico sempre existiu, sempre foi arduamente combatido por todo dogma, e sempre sobreviveu oculto. Sim, desejo mistico, pois o que se procura é a verdade, o ser voce-mesmo, a paz final, o sentido das coisas e da vida. Em 2012, qual o pensador, seja filósofo, poeta, físico, médico ou vagabundo boêmio, que não ansia por isso? Que não passa a vida tentando chegar ao centro de seu interior e ver o que há nesse centro?
Mas não confunda as coisas. Se para encontrar esse centro voce usa os passos de algum outro caminhante, voce segue um dogma e na verdade não está saindo do lugar. O que Valentino dizia que mais irritou a igreja é que ninguém pode fazer o trajeto por ninguém. Cada um é único, ninguém faz parte de um rebanho ou de uma corrente. Cada descoberta é feita a seu modo, de seu estilo, com sua conduta. Individual. Fé de caráter elitista e individualista, ela tinha de ser perseguida pelas religiões que pregam o comum e o coletivo.
Bobamente então, viajamos ao Perú, a Indonésia ou viajamos em LSD, sem saber qual o sentido dessas viagens. Estudamos poesia, psicologia, religião, sem saber o porque desse estudo. Ficamos abstraídos em pensamentos confusos, sonhamos imagens simbólicas, nos fechamos em doida busca digital, sem saber o porque desses atos, desses sonhos, dessas ansias. E lemos tolices que prometem dar um caminho, vemos filmes que parecem dizer algo ( e nada falam porque temem se perder ), tentamos mergulhar em música, em sexo, em sentimentos "profundos"... tudo isso com um só objetivo: nos encontrar. Há algum outro objetivo na vida dos pensadores no último século e meio? Na arte moderna ou nas vidas dos homens privilegiados que não precisam pensar apenas em sobreviver?
Pois saiba que desde antes do judaísmo já havia esse sentimento. A busca do eu-verdadeiro, do eu que não pode morrer porque jamais foi criado.
Escrevo agora alguns pensamentos de Henry Corbin, o mais renomado estudioso dessa fé ( Sim, não tema a palavra fé. Sem ela voce não consegue nem mesmo atravessar a rua ).
A divisão mental entre abstração e razão tirou toda a possibilidade de se entender a vida. Já fomos capazes de ler tudo o que há na existência. Hoje só podemos ver aquilo a que fomos ensinados a perceber.
Se buscamos a nós-mesmos fora de nós-mesmos, encontramos a catástrofe. Catástrofe erótica, na forma de amores-paixóes fadados a insatisfação; e ideologias, onde tentamos nos ver naquilo que foi criado por outro.
A linguagem poética faz com que conheçamos aquilo que está dentro de nós. Cada grande poeta nos dá a possibilidade de um nascimento interior.
Religião individualista, fé daqueles que passam a vida atrás de conhecimento, crença em eu-interior que não pode deixar de ser, o caráter mais terrível dessa corrente mistica é a certeza de que toda a verdade existe desde sempre dentro daquele que a procura. Dessa forma, padres, guias, lideres, passam a ser supérfluos. Viver a vida que vale a pena é andar só e confiar apenas no seu interior.
Existe religião que seja mais a cara dos dias que agora vivemos?