O MAR, O MAR - IRIS MURDOCH, É POSSÍVEL SABER ALGUMA VERDADE?

   Fizeram um filme sobre Iris Murdoch alguns anos atrás. Acho que Richard Eyre dirigiu... sei que era com Kate Winslet e Judi Dench. Bom filme, que mostrava a importância de Iris para a cultura inglesa no período 1960/2000. Ela fazia palestras, divulgava sua filosofia, tinha fãs apaixonados. Leio em Harold Bloom que ela era profissionalmente uma filósofa. E Bloom diz que considera Iris Murdoch autora genial, mas que estranhamente, ela nada escreveu de plenamente satisfatório. Para ele, Iris nunca escreveu um romance, ela escrevia textos romanescos.
   Texto romanesco é aquilo que Stevenson ou Kipling escreveram. Livros em que a ação e a ambientação são o mais absorvente. Os personagens são secundários. Nunca parecem seres reais. Weeell.... Murdoch adorava Henry James e Shakespeare, dois mestres em criar gente de verdade. Mas, nos livros de Iris, o que nos seduz é seu enredo, os momentos de mistério e de leve absurdo que ela cria. Quanto aos persoangens, nos são quase indiferentes.
  Aqui, um diretor de teatro, aos 60 anos, resolve se aposentar. Ele é famoso, de um modo pop e quase vulgar. Compra um velho e esquisito casarão numa praia inglesa e passa a viver lá, só. O inicio desse longo livro é delicioso. Murdoch nos leva pela mão à esse mundo meio doido, meio mágico que ela cria. Nos sentimos em meio ao sol, a espuma do mar, as pedras, as salas da casa. O ex-diretor começa a ter a sensação de que coisas estranhas acontecem na casa. E chega a ver um monstro no mar. Logo sabemos que as coisas estranhas eram seus amigos, que se infiltravam na casa sem que ele o soubesse. E que o monstro pode ser um flash-back de uma antiga viagem de LSD. 
   Mulherengo, esse velho homem recebe visitas das atrizes e vedetes que amou. E dos atores que conheceu. Ele começa a escrever suas memórias, que é o livro que lemos. Na infância foi menino retraído, com inveja do primo mais rico. E é escrevendo esse livro que ele mergulha no inferno: recorda sua primeira namorada, e ao surpreendentemente encontrá-la na praia, passa a viver um delirio de ciúmes, de medo e de paranóia. E mais do enredo eu não conto.
   Murdoch era adepta de um tipo de platonismo do bem. Ela acreditava que o que vemos é ilusório, e que a vida verdadeira só pode nos ser conhecida de forma indireta.  Charles, o diretor aposentado, é quem nos conta a história, nos revela seus pensamentos, seus sentimentos. Mas algo nos perturba. Começamos a perceber que Charles está completamente enganado. Que sua primeira namorada é uma senhora feia, desinteressante, e pior, que ela não o quer. Charles vê em tudo aquilo que ela faz um sinal de amor, planeja coisas impossíveis, tem total fé naquilo que quer crer. Ao mesmo tempo, ele nos descreve seu primo como um arrogante e sem sal militar reformado. Mas ficamos confusos, porque tudo o que esse primo diz nos parece interessante, profundo, do bem. Por mais que Charles fale mal desse primo, o que desejamos é ouvi-lo falar.
   A paixão de Charles termina em morte. Ele se enganara. E ao fim do livro, em belas páginas, descobre que seu primo era muito mais do que ele imaginara. James, o primo, fora sempre um estudioso de misticismo budista, um colecionador de obras do Tibet, um mistério. E fora também o homem que sempre lhe ajudara. Quanto ao primeiro amor... que amor?
   Como leitores somos manipulados pela arte de Murdoch. Acreditamos em Charles, depois percebemos seu erro e sua doideira e ao fim, quando ele cai na real, quando ele renega seu amor "louco", sua paranóia, vem o pensamento fatal: E se ele estivesse certo? E se aquele fosse mesmo seu grande amor? E se ela realmente o amasse? E se a "febre" de Charles fosse na verdade "o bem" ?
   Iris Murdoch dizia que o mundo de Shakespeare, Homero, Dante e Tolstoi é o verdadeiro mundo. É o mundo real, que não conseguimos e não suportamos perceber. Que o drama mágico de Shakespeare, que as paixões simbólicas de Homero, que a poesia de Dante ou o imenso universo de Tolstoi são a verdade. Que o cotidiano de jornais, tvs, carros e telefone é apenas A Ilusão.
   Iris Murdoch estava certa. E quanto mais o mundo avançar século xxi adentro, mais razão lhe daremos. Não esquecer o mundo de Shakespeare, de Dante, Homero, Tolstoi é recordar sempre o que somos DE VERDADE. É não perder contato com o que desejamos, o que sofremos, o que podemos ser e aquilo que acreditamos.
   O resto é pó...