CONVERSAS COM SCORSESE- RICHARD SCHICKEL

   Martin Scorsese descreve, nesta longa conversa com Schickel, o bairro onde nasceu. Se voce assistiu a "Goodfellas", é aquilo, máfia, gangues de rua, becos sujos. O pai, estoico, tentava não se envolver com a máfia, a mãe, mulher sábia, cheia de ironia, cuidava de Martin, que sofria de asma. O pai o levava ao cinema toda semana, e em casa o jovem Scorsese desenhava os filmes que assistira. Ele amava westerns e épicos sobre a antiga Roma. E tinha um sonho: ser padre.
   Esse é o inicio desse belo livro de Richard Schickel, uma longa entrevista com aquele que é o principal diretor de cinema da América em atividade. Martin gosta de falar e mais que tudo, ele realmente ama o cinema. É bonito ler suas palavras sobre Gary Cooper, John Ford, Rosselini ou Howard Hawks. A descoberta do neo-realismo italiano com seus pais, na TV, e a longa análise que ele faz sobre "Rastros de Ódio".
  Várias curiosidades são expostas. O fato de que foi Martin quem deu o pontapé para Wes Anderson fazer a "Viagem a Dajeerling", Wes teve a ideia ao ver 'O Rio Sagrado" de Renoir ( e filmes de Satyajit Ray ), indicado por Martin. Os bastidores de Woodstock, filme-festival que ele co-dirigiu, mas do qual foi garfado. ( Interessante observar que Woodstock deveria ser um festival "normal". Nada havia sido programado em termos de filmagem ou cobertura de midia. De repente as pessoas vão chegando do nada e o evento se torna monstruoso ). A explosão de 'Caminhos Perigosos", e dá pra notar que é um dos favoritos de Martin até hoje. De Niro, um cara calado e cheio de ideias; e o mentor de Martin, Michael Powell, um gênio do cinema inglês e que acabou por se casar com sua montadora. Aliás, foi Powell que o aconselhou a aceitar a direção de Goodfellas.
   Scorsese recorda a beleza do Technicolor, as cores fortes ( ao contrário dos filmes de hoje, que têm cores esmaecidas, mortas, frias ). A produção de 'O Aviador", que tenta reproduzir o colorido dos filmes em technicolor, ( o sistema technicolor não existe mais. A Kodak aposentou a revelação e produção dessa película. Era um sistema caro demais. O último filme foi "O Poderoso Chefão II" ). É triste observar o fato de que hoje não se pode mais fazer filmes como 'O Poderoso Chefão" ou "Apocalypse Now". Existe toda uma gama de temas e custos proibitivos. Filme caro só se for para os teens, filme ambicioso tem de ser barato.
   O contraste entre o cinema de Martin e o de Eastwood. Martin, um italiano que cresceu com rock, ( ele é louco por Stones, Dylan e The Band ), e faz filmes intensos; e Clint, um tipico americano da California, que cresceu com cool jazz e faz filmes sóbrios, controlados. E observamos que isso se reflete até nos gostos pessoais. Se Clint vive citando Kurosawa, Leone e Huston; Martin cita Visconti, Fellini, Hitchcock, muito Bergman e um monte de Elia Kazan.
   O mais delicioso são os pequenos filmes geniais que Martin adora. Filmes de Wise, de Fuller, de Anthony Mann. Elogia Frank Capra, James Stewart e Henry Fonda. E diz que agora, mais velho, anda vendo muito Michael Powell, Carol Reed, Jean Renoir, e principalmente Carl Dreyer. Ele considera "A Palavra" uma obra-prima. E se emociona ao contar como teve sorte em ser um jovem cinéfilo nos anos 60. Bergman estreando filmes novos a cada nove meses, e mais Cassavettes, Pasolini, Olmmi, Bertolucci, Antonioni, Bunuel, Godard, Kubrick...
   Scorsese conta filme por filme. O mais dificil de fazer foi "A Ultima Tentação de Cristo", filme que sentimos ser aquele pelo qual ele mais lutou, mais se entregou, mais sonhou em fazer. E ficamos sabendo que a mais de dez anos ele sonha em fazer um filme no Japão, sobre missionarios católicos para lá enviados no século XVI. Ninguém quer produzi-lo. Enquanto isso ele faz "A Ilha do Medo" e prepara um documentário sobre George Harrison e um longa de ficção sobre Sinatra. Tudo na esperança de um dia fazer o tal filme japonês. Nos bons tempos da Warner ele já teria sido feito...
   Ele fala da barbárie. Que é óbvio que estamos caindo degrau a degrau e que pelos próximos duzentos anos estaremos em mundo de extrema violência. Filmes, músicas, jogos, linguagem, tudo nos prepara para esse mundo. Martin diz que os ídolos de hoje são todos guerreiros, lutadores e impetuosos, nada há que faça com que admiremos a doçura, a caridade ou a compaixão.
   Martin preserva filmes. Gasta seu dinheiro nessa paixão. Tira antigos filmes do ostracismo. E os exibe para seus elencos antes de suas filmagens, para que saibam o que ele deseja obter. Daniel-Day Lewis é um ator que conhece profundamente o cinema clássico, e Leo di Caprio aprendeu com Martin, ( "Out of Past" de Jacques Tourneur, se tornou o filme favorito de Leo nas filmagens de "Os Infiltrados" ).
   Fracassos ele experimentou vários. 'New York, New York" foi o maior. Uma tentativa desastrada de fazer um musical com as cores de Minelli e o drama de Scorsese. "Os Infiltrados" é seu Oscar, afinal, mas "A Ilha do Medo" é incrivelmente sua maior bilheteria ( um filme para ganhar dinheiro, e que parece estar longe de ser um favorito de Martin ). Mas me veio uma sensação estranha durante a leitura do livro. É a de que Scorsese é sem dúvida um dos grandes. Tão bom quanto Kazan. Ele fez alguns filmes que me deixaram muito impressionados ( TAXI DRIVER, O TOURO INDOMÁVEL, OS INFILTRADOS ), ou que me deram um soco na boca ( A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO, CAMINHOS PERIGOSOS, GOODFELLAS ), e até aqueles que me divertiram intensamente ( ALICE NÃO MORA MAIS AQUI, A COR DO DINHEIRO, THE LAST WALTZ ), mas ele não é o tipo de diretor que me dá vontade de rever e rever seus filmes. Com excessão de ALICE e de CAMINHOS PERIGOSOS, nenhum deles eu vi mais de uma vez. Os admiro muito, mas não os amo. Tenho uma teoria: sua energia é tão intensa, seus melhores filmes são tão nervosos, que vê-los é experiência cansativa, me esgota. Tenho de os ver, nunca me arrependo, mas não desejo repetir a dose.
   Mas como pessoa, o livro o atesta, Scorsese é bom para se conversar, para se conhecer, é um cara admirável. Eis um bom presente de Natal para cinéfilos.
   PS: Ao falar da morte ele diz: "Será uma pena não poder mais rever os filmes de Capra, de Ford, de Kazan..." Tenho pensado nisso. Morrer não me dá medo, o que me entristece é não poder rever certos filmes, ouvir certas musicas e sentir o sol na pele...Mas esse é tema pra outra conversa....