WALTER BENJAMIN, HISTÓRIAS PRA CONTAR

   Ao fim da primeira guerra mundial, Benjamim percebeu que os soldados que voltavam do front nada tinham a contar. Comparando suas cartas com as cartas de soldados de outras guerras, comparando suas memórias com as memórias de outras guerras, ele percebeu que tudo o que eles tinham na mente eram lamentações, dores, angústia e vazio absoluto.
   Walter Benjamim, membro da escola de Frankfurt, foi dentre todos os seus colegas o que escrevia melhor. Isso porque ele unia à frieza do materialismo seus estudos sobre a cabala. Ele procurava unir o limite racional da ciência da época, à espiritualidade da religião e do espirito. Seus textos tiveram um impacto imenso. Na época da pura razão, ele logo notou que o interesse por astrologia, cientologia, quiromancia e paranormalidade, era uma vulgar mecanização de um anseio verdadeiro do homem, o anseio por transcendencia, por sentido, por visão.
   O homem sempre contou histórias. Cada viagem era uma história, cada novo local dava motivo a um novo contar. Viajava-se não para chegar, mas sim para usufruir do caminho, para se ter histórias. Ao voltar, essas histórias eram contadas oralmente, para a comunidade. Jamais existiu sentido em se contar uma história para uma pessoa. Era um representante do grupo contando para o seu povo. Quando a escrita suplantou a oralidade, esses textos continuaram a ter o caráter de "contar uma história". O texto era uma experiência contada para todos. Não por acaso, as mais clássicas dessas histórias falam de mar, marujos, cavaleiros e soldados, são viajantes, pessoas que vão ver o que existe além, e que retornam para nos contar. E que por terem estado lá e vivido aquilo, são SÁBIAS. Toda história de então é uma procura inconsciente por sabedoria. E a sabedoria é saber por ter vivido, é conhecimento feito e realisado.
   A primeira guerra desmoralizou o soldado. Pela primeira vez não havia a menor possibilidade de que o soldado pudesse voltar como herói. Pior que isso, diante de um tanque ou de um avião, o soldado se sentia ridiculo. O centro da guerra passa a ser a máquina, o homem, morto aos milhares, se vê como um nada, um assessório que lá se encontra para cuidar da máquina. Ao retornar, aturdido e esvaziado de dignidade, o que tem ele para dizer aos seus? O que contar? Apenas a dor e o choro. Uma geração que ia de carroça a escola e caçava pássaros com estilingue, se viu jogada em meio a bombas, máquinas de matar e fumaça venenosa.
   Sem história para ser contada o homem não existe. O que nos dá dignidade e sentido é a história que temos a contar. Mas para que essa história se produza é preciso tempo, fruição. Numa viagem a pé ou a cavalo voce tem o tempo necessário para usufruir da paisagem, para experimentar o que o cerca, para provar e observar a vida. Histórias ocorrem a seu redor todo o tempo, e voce tem o vagar para as elaborar. No trem isso não ocorre. A história deixa de ser uma fruição e passa a ser uma partida e uma chegada. Voce sai de uma estação com a mente já alojada na chegada, e tudo o que acontecer no trajeto lhe será INDIFERENTE. A substância da experiência se desfaz, a sabedoria se torna impossível, pois passou-se por um trajeto sem que se pudesse usufruí-lo, portanto, vivê-lo.
   O romancista moderno ( estes pensamentos que aqui cito são da década de 30 ), se separa da comunidade. Escrever passa a ser ato solitário, distanciado da sociedade, em absoluto recolhimento. Pior que isso, se escreve para si-mesmo, não se procura comunicar nada. Romance passa a ser BUSCA DE SENTIDO. Todo romance, de Balzac a Thomas Mann é uma tentativa de se encontrar sentido, de se achar uma HISTÓRIA onde aparentemente só existe vazio. Não se usufrui a vida, não se experimenta o trajeto, não se adquire a sabedoria para ser contada e passada a nova geração. Tudo o que se escreve é a busca por sentido, ocasionalmente o seu encontro, mas sempre cifrado, individualizado, em segredo.
   Benjamim ainda fala sobre o perigo da informação. Toda a manhã recebemos um milhão de notícias, e no entanto, todas aparentemente iguais. Informações que são prontamente esquecidas. Nos tornando cada vez mais pobres de HISTÓRIAS. Pior: a informação deve ser sempre nova, deve nos afetar IMEDIATAMENTE.  Passamos a cobrar isso do romance, que seja sempre imediato/novo e próximo a nossa realidade. Paradoxo, sendo assim ele nada tem a nos ensinar, ele deixa de ser sábio, torna-se INFORMAÇÃO.
   Fim da aula.
   E penso no empobrecimento de conversas, na falta do que dizer sobre uma viagem, um amor, um luto. Em como nada mais é narrado, contado. Na sensação de que as pessoas passam pela vida sem história. Odiando a estrada e ansiando por chegar rápido. Pulando em noitadas sem narração. Nada historiando, indo logo pros finalmentes. Romances muito mal escritos. Sabedoria? Em gotas ela é vendida, portanto, torna-se informação.
   Talvez seja por isso que eu tanto escrevo aqui. Eu não sou um romancista. A vida tem sentido, sempre possuiu sentido pra mim. Eu sou um contador de experiências, um velho à fogueira, um avô, um professor. Sou guardião de sentidos, sentidos em filmes, em músicas, em filmes. Sou memória.
   Walter Benjamim está muito perto de mim.