REI LEAR- WILLIAM SHAKESPEARE, O MUNDO FAZ SENTIDO?

   O mundo como planicie onde o que impera é o ciúme, a incompreensão. O ruim se fortalece, o bom padece. Shakespeare ergue um monumento. Difícil lembrar de texto mais capital. De Dostoievski à Bernanos, todos beberam aqui.
   Lear é o rei-patriarca. Que se deixa levar por duas filhas invejosas, e renega a única que o ama, Cordelia. Pois Cordelia é incapaz de verbalizar ( e assim vulgarizar ) o amor que sente pelo pai. Lear é vaidoso, deseja adulação, homenagem.
   Ao mesmo tempo, em outra casa, vemos Edmundo, o mal, filho bastardo, enganar Edgard, seu irmão, e através de trama bem urdida, fazer seu pai, Gloucester, renegar o bom e ingênuo filho, Edgard. Edgard foge e se faz mendigo, louco em meio a lama-caos. Rei Lear é sobre o amor, e esse amor, amor entre pai e filhos, único verdadeiro, é também o caminho para a dor, a loucura e a morte. Terrível mensagem da peça: amamos apenas nossa origem ( o pai ), mas esse amor nos arruina.
   As filhas invejosas de Lear o expulsam de casa, e ele enlouquece. Outro tema, a dor da velhice, a dor da impotência. O rei vaga na chuva e na planicie, vaga e simboliza todos nós, sem lar, sem prole, sem honra, sem razão. O bobo o acompanha, Kent, nobre fiel o segue disfarçado e Cordelia se casou e vive longe, na França. As dores crescem: o pai de Edgard e Edmund, graças a tramóia de Edmund tem seus olhos arrancados e passa a andar sem rumo também. Imagem que não nos abandona: todos os bons vagam, cegos ou loucos, a esmo. Esse pai, Gloucester, acaba por ser guiado pelo filho mendigo, Edgard, sem o saber. É salvo do suicidio, é guiado por aquele que renegou injustamente.
  Edmund torna-se amante das duas filhas más de Lear. A violência cresce e atinge seu ápice no duelo dos irmãos, Edgard e Edmund. O mal é vencido, mas surge a terrível ironia da peça....
  O pai de Edgard morre e Lear entra em cena com Cordelia morta em seus braços. O velho rei, patético, lamentando a filha morta é daquelas cenas que jamais serão esquecidas por quem a viu. E brota a certeza, o mal é eliminado, mas a vitória não é do bem. Ficamos estupefatos. Não existe catarse em Lear, não há alivio. O mal deixa herança, deixa destruição, o bem persiste, mas não vence...
   Rei Lear, com sua linguagem chegando aos limites do cognoscível, demonstra o quanto nosso público teatral decaiu. No Globe Theatre, a ingressos que equivaliam a uma cerveja, o povão ia em massa ver Rei Lear ou Macbeth. Urrava de prazer, recitava as partes conhecidas, ria com o absurdo. Hoje, Shakespeare é entendido apenas pelos letrados, pelos atentos, pelos cultos... Porque? Estaremos mais burros?
   Walter Benjamim dizia que perdemos a humanidade. Nosso dom ( base do ser humano ) de compreender narrativas, de se deixar conduzir pela palavra, foi perdido em prol da mecanização. Hoje compreendemos somente o que é mecânico, o que tem um sistema claro e único, o que é plano e funcional. Será?
   Shakespeare nos recorda do quanto fomos grandes, de como nossas emoções podem ser vastas, da distância que nossa lingua pode percorrer, e de como perdemos a alma em favor do poder.
   A versão que assisti tem Olivier como Lear. Talvez um Lear bonito demais, mas como é bom ouvir sua voz em frases perfeitas e claras! Bravo!