Um homem volta a New York após vários anos em Londres. Dono de imóveis, ele reforma alguns e passa a visitar toda a noite a casa onde nasceu. Isso passa a ser uma febre, e ele "sente" a presença de "alguma coisa" na casa. Um fantasma?
Esse é o tema aparente desse magistral conto do grande Henry James. Tenho a sorte de ter um professor que não só é tradutor de James, como usa-o de exemplo de escritor moderno. O mundo de James é nosso mundo, e neste conto ele exibe a alma de alguém que "sente e pressente" o que seja nossa realidade. Ou o que nos resta dela. O conto tem várias leituras, todas explícitas, claras, nítidas.
Ao voltar para os EUA, a primeira surpresa do personagem central é o tamanho da destruição. Nada lhe é familiar, tudo aquilo que marcava sua vida fora aniquilado. Edifícios cobrem suas lembranças e as ruas asfaltadas apagam suas pegadas. A identificação com a cidade não é mais possível. Ele pode admirar e temer a força das construções, mas se vê excluído de seu meio. A cidade não precisa mais das pessoas. É nesse momento que ele se coloca em questão: o que é real? A vida lá fora ou a casa onde ele nasceu? Um mundo que ao mudar sem parar nega a presença, ou sua vida interior, a sua alma, memórias que não podem mudar, que esperam para ser resgatadas? Ele sente que a vida real respira dentro da casa, nas paredes, nos corredores, nos reflexos dos dourados. Fora da casa ele apenas se move, trabalha, faz coisas, a vida de verdade começa dentro da casa.
Vem um segundo tema nesse conto que não se esgota: a possibilidade do tempo. O que poderia ter sido e não é. Como sua vida seria se ele jamais tivesse saído da casa, o que lhe pareceria a vida, para onde ela teria ido. Vem daí outra questão: o que é sua vida? Ou, o que ela não é? Como saber o que ele realmente é ou o que ele parece ser. Questão: o que ele não sabe? O conto antecipa uma análise terapêutica bem feita, ele percorre as paredes de seu ser, ele questiona vivenciando, ele retorna e procura seu fantasma- aquele "ele" que lá ficou.
O mais fascinante tema do conto surge em seu meio. A beleza das palavras. Existe uma vida lá fora, mas ela não tem beleza e presença porque ela NÃO É NARRADA. O prazer, e consequentemente a verdade, só pode surgir no discurso, na descrição. Descrever cada detalhe da casa, rememorar e contar toda lembrança, esse falar é já um prazer em si, mas o prazer de contar faz nascer a presença real do que é contado. Eis o sentido das palavras, elas dão verdade dando prazer. SÓ SE AMA AQUILO QUE SE CONTA. É narrando a casa que se ama a casa. A vida lá fora, em eterna pressa, passa tão veloz que não permite uma narração, portanto, não se permite ser amada. A PRESSA MATA O AMOR. Amar é ato de memória.
O personagem irá encontrar esse eu-que-ficou? Não responderei. A BELA ESQUINA é um conto que deve ser lido e relido. O que sei é que minha experiência de vida é magicamente idêntica ao do personagem. Não me canso de relembrar e de buscar as ruínas da casa onde nasci. Ela foi reformada e está irreconhecível, mas sempre dou um jeito de andar por sua rua, respirar seu ar, tentar captar algum ângulo onde ela é o que fora um dia. E eu realmente me procuro nessa procura. O que tento achar, encontrar, é uma certa pureza de olhar, um modo de provar a vida pela primeira vez, as cores limpas, a verdade do inicio. Olhando aquelas paredes o que procuro é uma visão, o fim dos véus, poder ver e sentir SEM PENSAR. Talvez minha morte viva a minha espera nessa casa ( o conto deixa isso claro ), mas esse morrer é um renascer, o único verdadeiro.
Conto que vale por uma cura, narrativa que dá sentido a própria narração, A BELA ESQUINA é um milagre para aqueles que não crêem em milagres. Henry James é meu guru.
Esse é o tema aparente desse magistral conto do grande Henry James. Tenho a sorte de ter um professor que não só é tradutor de James, como usa-o de exemplo de escritor moderno. O mundo de James é nosso mundo, e neste conto ele exibe a alma de alguém que "sente e pressente" o que seja nossa realidade. Ou o que nos resta dela. O conto tem várias leituras, todas explícitas, claras, nítidas.
Ao voltar para os EUA, a primeira surpresa do personagem central é o tamanho da destruição. Nada lhe é familiar, tudo aquilo que marcava sua vida fora aniquilado. Edifícios cobrem suas lembranças e as ruas asfaltadas apagam suas pegadas. A identificação com a cidade não é mais possível. Ele pode admirar e temer a força das construções, mas se vê excluído de seu meio. A cidade não precisa mais das pessoas. É nesse momento que ele se coloca em questão: o que é real? A vida lá fora ou a casa onde ele nasceu? Um mundo que ao mudar sem parar nega a presença, ou sua vida interior, a sua alma, memórias que não podem mudar, que esperam para ser resgatadas? Ele sente que a vida real respira dentro da casa, nas paredes, nos corredores, nos reflexos dos dourados. Fora da casa ele apenas se move, trabalha, faz coisas, a vida de verdade começa dentro da casa.
Vem um segundo tema nesse conto que não se esgota: a possibilidade do tempo. O que poderia ter sido e não é. Como sua vida seria se ele jamais tivesse saído da casa, o que lhe pareceria a vida, para onde ela teria ido. Vem daí outra questão: o que é sua vida? Ou, o que ela não é? Como saber o que ele realmente é ou o que ele parece ser. Questão: o que ele não sabe? O conto antecipa uma análise terapêutica bem feita, ele percorre as paredes de seu ser, ele questiona vivenciando, ele retorna e procura seu fantasma- aquele "ele" que lá ficou.
O mais fascinante tema do conto surge em seu meio. A beleza das palavras. Existe uma vida lá fora, mas ela não tem beleza e presença porque ela NÃO É NARRADA. O prazer, e consequentemente a verdade, só pode surgir no discurso, na descrição. Descrever cada detalhe da casa, rememorar e contar toda lembrança, esse falar é já um prazer em si, mas o prazer de contar faz nascer a presença real do que é contado. Eis o sentido das palavras, elas dão verdade dando prazer. SÓ SE AMA AQUILO QUE SE CONTA. É narrando a casa que se ama a casa. A vida lá fora, em eterna pressa, passa tão veloz que não permite uma narração, portanto, não se permite ser amada. A PRESSA MATA O AMOR. Amar é ato de memória.
O personagem irá encontrar esse eu-que-ficou? Não responderei. A BELA ESQUINA é um conto que deve ser lido e relido. O que sei é que minha experiência de vida é magicamente idêntica ao do personagem. Não me canso de relembrar e de buscar as ruínas da casa onde nasci. Ela foi reformada e está irreconhecível, mas sempre dou um jeito de andar por sua rua, respirar seu ar, tentar captar algum ângulo onde ela é o que fora um dia. E eu realmente me procuro nessa procura. O que tento achar, encontrar, é uma certa pureza de olhar, um modo de provar a vida pela primeira vez, as cores limpas, a verdade do inicio. Olhando aquelas paredes o que procuro é uma visão, o fim dos véus, poder ver e sentir SEM PENSAR. Talvez minha morte viva a minha espera nessa casa ( o conto deixa isso claro ), mas esse morrer é um renascer, o único verdadeiro.
Conto que vale por uma cura, narrativa que dá sentido a própria narração, A BELA ESQUINA é um milagre para aqueles que não crêem em milagres. Henry James é meu guru.