Conhecido como grande ceramista, o inglês De Waal, após pesquisas, viagens, dores e relembranças, escreve um livro, este. Nele ele fala dos netsuquês de sua familia. Primeiro: o que é um netsuquê? São minúsculas estátuas de madeira ou marfim, ricas de detalhes, feitas no antigo Japão. São feitas para o toque, para se levar nas mãos, no bolso, em cinto. A familia de De Waal tem mais de 200 netsuquês. Segunda questão: que familia?
Começa o livro. A familia de Edmund é a familia Ephrussi, judeus de Odessa que se tornaram milionários no século XIX no comércio de grãos. Charles, tataravô de Edmund é o primeiro herói do livro. Vive em Paris e tem um palácio que existe ainda hoje. Hoje transformado em escritórios, lógico. Charles financia a arte de Renoir, de Degas e de Pissarro, torna-se personagem de Proust e coleciona com avidez. O luxo em que Charles vive nos é irrecuperável. O livro de De Waal tem muito de proustiano. Charles compra pinturas da renascença, prata e cristal, tapetes, os móveis mais raros e vive em seu palácio de ouro e de mármore, coberto por vidro, cercado de festas e lacaios. Charles vive para o belo.
A França é tomada pela moda do japonismo. Tudo o que é japonês é chic. Charles compra os netsuquês e um armário de laca para os exibir. Os bonecos de marfim são felizes naquela casa. Apesar do anti-semitismo francês.
Na segunda parte do livro estamos na Viena de 1900. Para lá vão os netsuquês. Dados como presente de casamento para a bisavó de Edmund. Viena de Karl Krauss, de Schiele e de Klimt, mundo de café e chocolate, de soldados bem vestidos, de rituais, de um rei que jamais poderia morrer. Nessa Viena, mais que o luxo, há a sensação de que a vida é boa, de que tudo pode ser feito, desde que feito com classe. Os netsuquês ficam no quarto da senhora. E lá, em meio a todo aquele ouro e seda, eles se tornam brinquedos. O império austro-húngaro tem muito de terra da carochinha, e as crianças da familia ( familia agora de banqueiros ) brincam com os bonecos: tigres, ratos, samurais, lebres.
O nazismo surge lentamente e a familia passa pelo inferno em vida. Desapropriação, violência física, roubos, humilhação. Todos se desperçam. EUA, Inglaterra, México. A fortuna se esvai. Os palácios viram escritórios de nazistas. Edmund lê cartas, vê fotos, viaja até os lugares onde tudo ocorreu. Os netsuquês são escondidos pela empregada da familia, um a um, e vão para Londres, onde se tornam posse do avô de Edmund, Iggie.
Edmund nasce nos anos 60 e estuda cerãmica. Vai ao Japão fazer estágios e lá convive com seu avô, Iggie. Conhece os netsuquês.
O livro fala então do Japão pós-segunda guerra, da reconstrução, do milagre. E de Iggie, casado com um japonês, vivendo em Tokyo, apaixonado pelo país, e com seus netsuquês em lugar de honra.
......
Li artigo sobre este livro no Estadão. Fenômeno na Inglaterra, trata-se de um livro cada vez mais raro: best-seller que tem qualidade, que é relevante. No artigo se diz que há influência de Proust e de Sebald. Resolvo ler.
Nada há aqui da melancolia de Proust ( melancolia luminosa de Proust ), ou da profundidade filosófica de Sebald. Mas é sim, um belo livro. Que se lê com prazer, com curiosidade e com sofreguidão. De Waal não teme mostrar a decadência da civilização pós-Hitler, de exibir tudo aquilo que perdemos. E o que perdemos?
Acima de tudo perdemos nossos objetos. Todas as coisas que nos cercavam eram parte de nós e com elas dialogávamos. Objetos que eram vivos, pois em nosso esbanjamento de tempo e de vida, lhes doávamos essa sobra, essa história, esse afeto. Um mundo em que tudo ao redor tinha a certeza da permanência, daquilo que lá está para nos acompanhar, para ser nosso. Os netsuquês são personagens centrais, estão vivos, são a familia em sí-mesma.
Há tempo hoje para se vivificar as coisas? Olhe ao seu redor e tente encontar algo que lhe seja único. Um pedaço de coisa que possua história, narrativa, que conte algo, que respire. O livro possue essa conciência da perda, da luta contra a perda, da recusa a se deixar morrer. Luta judaica, sem dúvida, mas é a luta de todos aqueles que amam a cultura, a história, o pensamento, as "coisas".
Leiam. Leiam. Leiam. Leiam.
Começa o livro. A familia de Edmund é a familia Ephrussi, judeus de Odessa que se tornaram milionários no século XIX no comércio de grãos. Charles, tataravô de Edmund é o primeiro herói do livro. Vive em Paris e tem um palácio que existe ainda hoje. Hoje transformado em escritórios, lógico. Charles financia a arte de Renoir, de Degas e de Pissarro, torna-se personagem de Proust e coleciona com avidez. O luxo em que Charles vive nos é irrecuperável. O livro de De Waal tem muito de proustiano. Charles compra pinturas da renascença, prata e cristal, tapetes, os móveis mais raros e vive em seu palácio de ouro e de mármore, coberto por vidro, cercado de festas e lacaios. Charles vive para o belo.
A França é tomada pela moda do japonismo. Tudo o que é japonês é chic. Charles compra os netsuquês e um armário de laca para os exibir. Os bonecos de marfim são felizes naquela casa. Apesar do anti-semitismo francês.
Na segunda parte do livro estamos na Viena de 1900. Para lá vão os netsuquês. Dados como presente de casamento para a bisavó de Edmund. Viena de Karl Krauss, de Schiele e de Klimt, mundo de café e chocolate, de soldados bem vestidos, de rituais, de um rei que jamais poderia morrer. Nessa Viena, mais que o luxo, há a sensação de que a vida é boa, de que tudo pode ser feito, desde que feito com classe. Os netsuquês ficam no quarto da senhora. E lá, em meio a todo aquele ouro e seda, eles se tornam brinquedos. O império austro-húngaro tem muito de terra da carochinha, e as crianças da familia ( familia agora de banqueiros ) brincam com os bonecos: tigres, ratos, samurais, lebres.
O nazismo surge lentamente e a familia passa pelo inferno em vida. Desapropriação, violência física, roubos, humilhação. Todos se desperçam. EUA, Inglaterra, México. A fortuna se esvai. Os palácios viram escritórios de nazistas. Edmund lê cartas, vê fotos, viaja até os lugares onde tudo ocorreu. Os netsuquês são escondidos pela empregada da familia, um a um, e vão para Londres, onde se tornam posse do avô de Edmund, Iggie.
Edmund nasce nos anos 60 e estuda cerãmica. Vai ao Japão fazer estágios e lá convive com seu avô, Iggie. Conhece os netsuquês.
O livro fala então do Japão pós-segunda guerra, da reconstrução, do milagre. E de Iggie, casado com um japonês, vivendo em Tokyo, apaixonado pelo país, e com seus netsuquês em lugar de honra.
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Li artigo sobre este livro no Estadão. Fenômeno na Inglaterra, trata-se de um livro cada vez mais raro: best-seller que tem qualidade, que é relevante. No artigo se diz que há influência de Proust e de Sebald. Resolvo ler.
Nada há aqui da melancolia de Proust ( melancolia luminosa de Proust ), ou da profundidade filosófica de Sebald. Mas é sim, um belo livro. Que se lê com prazer, com curiosidade e com sofreguidão. De Waal não teme mostrar a decadência da civilização pós-Hitler, de exibir tudo aquilo que perdemos. E o que perdemos?
Acima de tudo perdemos nossos objetos. Todas as coisas que nos cercavam eram parte de nós e com elas dialogávamos. Objetos que eram vivos, pois em nosso esbanjamento de tempo e de vida, lhes doávamos essa sobra, essa história, esse afeto. Um mundo em que tudo ao redor tinha a certeza da permanência, daquilo que lá está para nos acompanhar, para ser nosso. Os netsuquês são personagens centrais, estão vivos, são a familia em sí-mesma.
Há tempo hoje para se vivificar as coisas? Olhe ao seu redor e tente encontar algo que lhe seja único. Um pedaço de coisa que possua história, narrativa, que conte algo, que respire. O livro possue essa conciência da perda, da luta contra a perda, da recusa a se deixar morrer. Luta judaica, sem dúvida, mas é a luta de todos aqueles que amam a cultura, a história, o pensamento, as "coisas".
Leiam. Leiam. Leiam. Leiam.