A ÁRVORE DA VIDA- TERRENCE MALICK

   Americanos não são bons de filosofia. Tirando William James e mais alguns pragmáticos não há nada de muito brilhante em país tão importante. Mas eles sabem, como ninguém, demonstrar coisas em ação, na prática. Mesmo suas religiões procuram esse gancho com os sentidos, com a materialidade da vida. O cinema americano consegue ser tão bom quanto qualquer outro quando usa seu dom de "fazer coisas", e não demonstrar teses. John Ford pode ser tão profundo quanto Bergman, mas jamais irá discutir abertamente aquilo que Bergman explicita. Não procure na América um Dreyer ou um Bresson. Não procure na Europa um Kazan ou um Lumet.
   Stanley Kubrick é a excessão, e várias vezes neste filme percebi o desejo de Malick em ser Kubrick. Quem quiser ver o mesmo filme sob enfoque mais profundo, veja 2001. E quem desejar ver o mesmo tema tratado de modo europeu, que alugue ASAS DO DESEJO. Cada época tem o filme que merece, e ASAS DO DESEJO vence este filme em tudo, inclusive em estética. Se voce nunca viu o filme de Wim Wenders não conhece cinema.
   Mas este filme também tem algo de FANNY E ALEXANDER, e comparar Malick com Bergman é uma covardia com o americano. Três minutos de MORANGOS SILVESTRES ( os 3 finais ) falam mais sobre o drama familiar que as duas horas aqui mostradas. O filme causa repulsa em certas pessoas porque a ambição de Malick está muito além de seu talento. Cada fotograma tenta ser "genial e solene", qualquer um percebe isso, e todos correm o risco de pensar: "Ah, chega de tanto pedantismo!" Malick tentou fazer um filme cósmico, não conseguiu, e eu me lembro também de RAN, talvez o mais cósmico dos filmes. Mas colocar Malick ao lado de Kurosawa é como comparar Bizet com Mozart.
   Uma das coisas que sei sobre mim é que sou bom em descobrir sentidos. Não vivo na doença da falta de sentido, nunca perdi o dom de ler o que me é dado. O sentido deste filme é simples, claro, e nisso há um mérito. Como bom americano Malick não perde de vista o dom de se comunicar. Sua ambição é imensa, mas ele não deixa de ter em vista seu possível público. É um filósofo que escreve claro. E a partir daqui deixo de falar do filme ( que tem o mérito de ser "do bem" ) e passo a ler o que nos é dado ( que não é pouca coisa ). Serei propositalmente contraditório. E bastante sincero.
   Ao contrário do que hoje é moda pensar, a relação familiar é um paralelo diminuído da relação de Deus com os homens. Nós não criamos Deus para espelhar e sublimar nossa relação falida com nosso pai biológico ( quanto chavão! ), é exatamente o contrário. As pessoas deveriam reaprender a ver as coisas sob mais de um ponto de vista, duvidar daquilo que lhes é dado. Nisso, o filme é cristalino. Muito mais profundo que IMAGINAR que há entre pai e filho uma rivalidade pela mãe, é PERCEBER que o amor do filho pelo pai e do pai pelo filho é o mais precioso. O que faz o filho se afastar é o fato de que ele não consegue compreender o tipo de amor que o pai lhe dá. Do mesmo modo como perguntamos a Deus que tipo de amor é esse que nos deixa sofrer, que se ausenta, que nos impõe regras duras, o filho passa a vida em rancor contra o pai descrendo de um amor que não o fez feliz. Mas o pai o ama. Com toda a força de seu ser, ele vive para ele. E tenta prepará-lo para a vida, tenta lhe incutir coragem, independência, força, confiança em si. Lhe dá regras rígidas, castigos, frieza, distancia. É um patriarca, um Deus que perde o amor de seu filho.
   A mãe, como em Jung, é a natureza. Ela nutre, ela dá a vida. Ela é toda conforto, pouco fala e tem calor. O pai/Deus é de certo modo seu Senhor, mas é a ela que os filhos/nós recorremos sempre. Ela sabe sem saber e é maravilhosamente bela sem ser bonita. Atente: nada há de edipiano aqui. Isso seria reduzir tudo ao bonde-do-Freud. A coisa é bem mais profunda, e portanto, é insolúvel. A mãe é e será sempre a NATUREZA, o ser ligado ao ciclo da vida. O pai sempre será o ser que vem de fora, o ausente, o que ama com propósito.
   Todos os santos foram heróis. E todos os heróis foram pessoas que romperam com sua casa. O filho perde o pai e passa a ser cruel. Ele, que tem ao lado um irmão "anjo", ponte entre o Pai e o filho, desacredita de tudo, do amor, da bondade, do sentido. Ainda se refugia no calor da mãe/natureza, mas esse calor começa a se reduzir a pele e sangue. A cena em que ele judia de um sapo ( a ciência ) e provoca dor no irmão ( a matéria ) são centrais. Isso as religiões dizem: é no filho "ovelha negra" que reside o potencial de profundo conhecimento. O filho que enfrenta o pai é exatamente aquele que um dia mais o amou.
   O pai se perde. Ele é renegado pelo mundo. Se recolhe e vai cultivar seu jardim, sua horta. A língua que o unia a vida se perdeu. Ele é demitido. Pode uma cena ser mais explícita?
   O filho rebelde, hoje, se perde em mundo que parece vazio, asséptico, morto. No universo de seus pais tudo era grama, capim, cães, pássaros, espaços livres, flores e céu. Ele vaga pela cidade e recorda. Recorda principalmente a morte de um irmão. Um filho do pai. E a dor da mãe, que milagrosamente sobrevive a dor. Convive com essa dor porque ela é a dor, ela é a mãe, ela é o ciclo. O filho então se reconcilia. A cena da catarse é bastante ruim, mas podemos ver o sentido final. O filho caminha ao lado do irmaõ, da mãe, do pai. Entre os edifícios de vidro há um céu.
   Bem....Agora dou mais um relato. E aqui falo de minha vivência pessoal com este filme. Primeiro. Malick consegue passar a impressão de "presença". Como ocorre em 2001, temos a sensação de que "alguma coisa" paira ao redor das cenas. Em 2001 é a inteligência cósmica, aqui é Deus ( sabemos que Malick é professor de filosofia e crente. Provávelmente um seguidor de Pascal e Bergson ). Alguém percebeu que ao mostrar a criação da vida, em cenas deslumbrantes, ele explicita e ao mesmo tempo cria um mistério? A vida nasce. Como?
   Em cada cena do filme, seja nas cenas de brincadeiras entre irmãos, seja nas brigas com o pai, há um personagem à parte, ausente/presente, presumível. Eis a repulsa que o filme pode causar: ele é religioso, tenta ser virtuoso, moralista, inflexível. Nada moderno, portanto.
   Chorei muito a partir das brigas entre pai e filho. Vivi tudo aquilo. Minha infância foi aquela. E é deslumbrante ver aqueles garotos todo o tempo na rua. Eles estão constantemente em estado de graças. Agradecem, sem saber, a cada árvore, cada folha de relva, ao céu que chove e que aquece. Eles usam seus olhos, seus corpos que correm e pulam. Amam sua mãe. E mais que tudo, querem amar e ser amados por seu pai ( o amor da mãe é inquestionável. Afinal, ela está sempre ali e jamais parece incompreensível ).
   Meu pai me fez sofrer demais, e todo esse sofrimento se deveu ao fato de que eu não conseguia crer em seu amor. Se ele me amava deveria fazer tudo o que minha mãe fazia: estar presente todo o tempo, ser carinhoso, real, físico, sem nada de oculto ou rigido. Ele tentava fazer de mim um homem, um ser mais duro, independente, alguém que pudesse se proteger dos perigos. E mais que tudo, ele queria que eu percebesse seu amor. A grande tragédia aí está: ele ama, mas esse amor parece não bastar. Seu amor não é percebido. ( E penso nas crianças que hoje não têm mães presentes para amar. Quem não viu sua mãe pendurando roupa no varal, cantando, o vento e o sol, não sabe o que o amor pode ser ). Essas crianças, na simbologia, perderam não só a presença da mãe; perderam a presença da natureza. Em nosso mundo sem mães e varais, também não existem gramados e espaços vazios.
   E com toda essa incompreensão, eis o sabor da vida, é exatamente em mim que vive mais forte o legado do que aconteceu. Sou eu, filho que xingava e chorava escondido, que carrego a lembrança. Sou eu, filho de um pai que nunca entrou numa igreja, que pressente mistérios sem nome e sem razão. Mistérios que são o que nos define e nos dá sentido.
   Quando Sean Penn anda pela praia, naquela cena paupérrima que remete ao pior da new-age, sou eu que ando por lá. Vejo ali meus mortos amados, minha morte futura e de todo dia. A felicidade, única, é ter tido essa mãe esse pai. Aquela rua é o paraíso. E tudo o que deveríamos fazer é cuidar dela. Cuidar com afinco, com sacrifício, com perseverança. Cercado pelos cães, pássaros e pela mãe/vida. E assistidos pelo Pai. Sem essa consciência de sentido, nada vale estar aqui, nada tem relevância e a chance de ter paz é nula.
   Um filme cheio de falhas, mas que nos dá muito o que ler. Precisa ser vivido.