O CÃO DO FILÓSOFO- RAIMOND GAITA

Professor de filosofia na Austrália, a questão que introduz o texto é das mais espinhosas: Afinal, os animais possuem uma consciência? E habilmente, o que Gaita faz é nos mostrar a irrelevância dessa questão. Não só dessa, mas a irrelêvancia de várias questões.
No mundo, no universo, não existe uma razão ou uma moral. Mais que isso, em nós não é a biologia ou a evolução que explica a vida. O que a explicaria é a experiência do corpo, a vivência corporal, a lingua viva das ações. Razão, moral, ética, são criações artificiais feitas pelo homem e que são válidas apenas em seus próprios termos. O problema é que estamos perdendo o hábito de questionar VERDADEIRAMENTE as coisas. É como se tudo fosse hoje uma questão de fé. Assim, quando um evolucionista diz que o comportamento materno é herança evolutiva aceitamos isso como verdade infalível. Mas, e as mães que abandonam seus filhos? E as mães que não se importam com as mortes de outros filhos? O que Gaita nos diz é que a vida é feita de muito mais escolhas do que pensamos.
Não importa se um cão pensa. O que importa é o corpo desse animal e aquilo que ele nos diz com seus olhos, músculos e atitudes. Pensar em linguagem canina é pensar em corpo. E o que nos une a esse ser-corpo não é o fato de que todos somos bichos, ou a ideia de que ele possui uma alma. O que une homem e cão é a decisão ativa de se gostar desse animal. Em palavras mais diretas, o amor. Raimond Gaita não tem nenhum receio em usar essa palavra, amor. Para ele, a poesia explica o mundo de forma muito mais completa que a razão. Porque?
A razão tende a sistematizar e reduzir tudo. Ela floresce em mentes que não toleram o imponderável, o excesso, o inalcansável. O pensamento poético faz exatamente o contrário: mostra o complexo naquilo que é aparentemente simples. A razão, ao pensar abrir nossos olhos, na verdade os fecha. Porque nós somos certamente um corpo, carne e sangue, e falamos e sentimos através desse corpo, e nada nele pede a razão, nada nele é absolutamente racional. Ato de irracionalidade suprema: a morte. Para que nascer se sabemos que iremos morrer? A morte destrói toda ilusão de racionalidade na vida e no corpo. Ela é um irracional desperdicio.
Gaita foge das fórmulas simples. Animais são animais. Merecem não o nosso respeito, merecem ser honrados. Honrando a vida de um bicho adquirimos o direito de honrar nossa própria vida. Ao perceber, por pura vontade e poesia, o quanto há de inalcansável num gato ou num pássaro, percebemos também o quanto há de sublime em nós mesmos. É impossível viver a plenitude de se estar vivo sem honrar toda vida ao redor. Mas isso não significa dar aos bichos o status de humanos. Significa entendê-los como seres ao lado de nós, completamente incompreensíveis e por isso mesmo, ricos de possível significado.
O livro discorre longamente sobre o problema do significado. Significado que só pode ser obtido se percebermos as coisas, capturarmos sua verdade possível. Se não houver idealização a priori.
Wittgenstein é citado. O filósofo demonstra que tudo na verdade é feito de crenças. Cremos que os outros têm uma mente. Cremos que eles são como nós. Onde a prova disso na razão? O que nos leva a ter a certeza de que existe uma vida interior em todos os humanos? A crença nessa ideia. Nada disso passa pela razão.
Em outro trecho se fala de Iris Murdoch. Ela fala que se conseguirmos deixar de lado o "ego obeso", ego que nos faz crer na razão; e por outro lado abandonarmos o sentimentalismo fofo da arte, que nos faz ver tudo como lenda e destino; talvez então consigamos usando o amor e a coragem ver a vida como ela é de fato.
Gaita nos lembra então que a ciência só existe em termos de pesos e contagens. Tudo precisa ser reduzido a números mensuráveis. Como medir a consciência de um animal? Num animal nada está oculto, tudo está lá, exposto. No animal o que a ciência pode? Até que ponto nossa consciência não é criada pela ciência para honra da ciência? Até que ponto nossa subjetividade não é criação artificial da arte para glória da arte?
Pablo Casals: " Nos últimos 80 anos todas as manhãs tenho acordado e executado ao menos duas peças de Bach antes de começar o dia. Bendizo a casa. Redescubro o mundo todas as manhãs. Tocar faz-me agradecer por viver e por ser humano. Não me recordo de um dia em minha vida sem o espanto pela natureza..." Esse é o amor incondicional pela vida sem a ajuda da religião. Casals agradece a vida, não questiona a vida, a aceita. Seria isso o ser-com-o-corpo?
Isak Dinesen: "Todos os pesares são suportáveis se contarmos uma história sobre ele."
Chesterton: " A vida está presa a uma teia de aranha sutil. Cada fio é um fio que leva a outro fio. Mas há muitos que desejam a destruir. Para esses tal complexidade é insuportável. São os reducionistas, os hiper-racionais. Esses pensam que se puderem substituir a teia por algo robusto conseguirão ter a paz definitiva. Paz em suas mentes assustadas." Para Gaita, a razão não faz parte dessa teia. Se uma estrela explode nada há de racional nisso. Se voce ama alguém, nada explica isso. Se um cão pensa ou apenas sente, qual o valor desse pensar canino?
RF Leavis diz que existem dois modos de se julgar um poema: " Isto pode ser assim..." e "Isto deve ser assim, mas..." No primeiro caso temos o julgamento que aceita a teia de relações, no segundo caso o endurecedor, aquele que sempre vem com um reducionismo expresso nos "mas..."
Por fim, Gaita tem a coragem de tocar no tema dos direitos humanos. Não existem direitos humanos. Ninguém tem o direito real a nada, o que há é um afeto, um respeito devido e sentido entre os homens. Portanto falar em direito animal é falar de algo que jamais existiu. O que deve ser pensado é o respeito, a honra que deve ser dada a toda a forma de vida. Árduo e belo livro.