Água de chuva escorre em janela. É a primeira cena deste que é o mais perfeito retrato da era vitoriana. Porque não se atém apenas ao charme ou ao ridículo da época. Ele exibe a crueldade.
Um adolescente vai passar o verão em casa de muito rico e esnobe amigo. Sutilmente percebemos que por ele não ser tão "alta classe" como todos os outros, olham-no com curiosidade, condescendencia, e logo fazem dele "um ser util". Afinal, lhe outorgaram o privilégio de os frequentar.
O menino se apaixona pela irmã mais velha do amigo. Como estamos em 1900, nada sabe sobre amor, namoro ou sexo. É usado pela irmã, que percebe esse amor juvenil. Pois ela tem um caso com o vizinho, um muito grosso, muito sujo e muito sexy plebeu. Fazem então do menino o mensageiro de seu caso secreto. Caso recheado de sexo, caso à D.H.Lawrence. Nesse processo, o menino quase enlouquece.
Todo o sistema de classes inglês é exposto. Os dandys vivem em seu mundinho de charutos, jantares, e total incompetência para a vida. Mas se vêem como muito especiais e detém o dinheiro e os direitos. O vizinho aluga as terras dos "nobres". Esse é o sistema. É ele quem produz a terra, quem gera riqueza, quem tem idéias e quem tem ambição. Os dandys recebem seu aluguel. Ao menino, que não é dandy ou arrendatário, que nada sabe e não sabe querer, resta o anódino papel de mensageiro.
A moça acha no vizinho aquilo que não terá com seu noivo: animalidade. Mas a sociedade vencerá. Ao mensageiro resta confusão e amargor. Bem-vindo à vida!
Poucos filmes tiveram elenco tão perfeito. Julie Christie faz a moça. Bela e fria como aço. Ela é toda egoísmo. Atriz mais que perfeita, atriz que esnobou o star-system, ela, aqui no auge da fama, logo diminuiria suas aparições. Optaria por viver.
Alan Bates faz o vizinho. E ele tem toda a animalidade que o papel requer. Para esse tipo, que é o personagem que na verdade fez a riqueza do império, Bates é imbatível.
Temos ainda Margaret Leighton como a mãe ultra esnobe. Terrível em suas suspeitas, essa atriz de longa carreira está assustadoramente ultra-classe. Edward Fox faz o noivo, um bem intencionado e meio aéreo dandy, ferido de guerra.
E numa pequena aparição temos esse fenômeno da natureza chamado Michael Redgrave. O pai de Vanessa nos comove como o menino nos dias de hoje. Seu olhar, olhar parvo, tolo, de ainda apaixonado, de quem arruinou sua vida, é inesquecível. Com um olhar apenas, Sir Michael diz toda a tragédia de sua não-vida. Um gênio.
Poucos filmes têm um Nobel em sua equipe. Harold Pinter, nobel de 2005, fez o roteiro ( baseado em L P Hartley ) à seu modo: cruel, ferino e de poucos diálogos. Nada de panfletagem: tudo é subentendido. O roteiro brilha em chamas.
A trilha sonora de Michel Legrand é feita de fugas à Bach. Talvez a mais bela das trilhas. A música tema é obra de mestre erudito consumado. Perfeição.
A fotografia é do mestre Gerry Fisher, mestre que fotografou 2001 de Kubrick. Os campos, as casas, as roupas, os céus são quadros de retratistas ingleses, mas atenção!!!! Jamais têm aquele jeito arrumadinho demais, nunca parecem "moda".
Joseph Losey é um diretor americano de esquerda que fugiu do país no MacCarthismo. Se adaptou muito bem à Inglaterra, se tornando um dos melhores diretores ingleses da época ( 1960/1977 ). Ele tinha um soberbo senso visual e uma ferina ambição. Seus filmes são sempre ácidos e estranhamente etéreos.
O Mensageiro venceu Cannes em 1971.
Losey, Legrand, Pinter, Fisher, Julie, Redgrave, Leighton, Bates e Fox. Onde achar hoje uma equipe assim????
Ps. Foi este filme, visto na Globo em 1977 que me acendeu o amor por Julie Christie. Me vi como aquele menino mensageiro. Mais importante, me apaixonei não só por ela, mas pela música superior de Legrand e pelo cinema. Se hoje escrevo sobre filmes, muito se deve a este filme.
Sua primeira frase ( dita por Sir Michael ): " O passado é um país distante. Visitá-lo é sempre conhecer um lugar desconhecido. "