ILUSTRADA PÓS-TUDO- MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

50 anos de Ilustrada.

Meu primeiro jornal foi o JT ( Jornal da Tarde ). Telmo Martino foi meu primeiro jornalista herói. Neste livro falam dele: Telmo mostrou a São Paulo o que era um aristocrata de Botafogo. Ele tirava uma de tudo. Dava apelidos que pegavam. Detestava tudo que não era Botafogo. Eram os anos 70. E nessa época, culturalmente, SP não existia. O BR era Rio e Bahia.

Tarso de Castro foi pra Folha. E o ar começou a circular por lá. Depois vieram Nelson Rodrigues e Paulo Francis. E quando chegam os anos 80 vem a molecada da USP. Molecada mesmo. Gente de 22 anos botando banca de diretor. Podia-se escrever sobre tudo. Sem a pressão do mercadão. Como fala Pepe Escobar, era um jato na mão de um moleque.

Não havia infra. Não tinha nem máquina de escrever pra todo mundo. Nem ar condicionado. nem salário digno. Mas se trabalhava por tesão. Até 14 horas por dia.

Já falei muito sobre a cena paulista desse tempo. Meu bode de sair de noite hoje é o tédio de quem conheceu essa noite de 82/85. No Carbono voce assistia o filme Performance e depois dançava tecno. Enquanto um cara grafitava a parede ao seu lado e outro se picava no banheiro. Voce nunca sabia o que esperar daquela noite. Mas sabia que sempre ia acontecer. Era o despertar pós-repressão. Louca euforia. A gente tinha a absoluta certeza de ser absolutamente moderno. Ninguém era mais moderno que eu. Um ego do tamanho de uma estrela. E todo mundo queria fazer arte.

No Satã cuspiam repolho na gente. E alguns iam de dinner jacket ( voce chama de smoking? ). Rolavam umas poesias que eram vaiadas. Bandas punks e dancinhas pop. Gays montados e drogas a vontade. Na rua voce era abordado por bêbados decadentes. Video-makers. Tirava-se a roupa no porão. Vomitava-se. Depois do Satã tudo na noite me parece careta.

Mas havia o luxo dos jardins. E se é pra se ter luxo, tem de se ter garçon. Toda balada tem de ter garçon e chapelaria. E banda tocando no fim de noite. E café da manhã quando amanhece para os que ficaram. Antes de sair voce cria seu tipo. E o tipo que mais faz sucesso é o suicida terminal. Todos são Rimbauds.

Gente vinha de Paris ou de Toronto para cair na noite de SP. Era o underground do mundo. Um esgoto com cheiro de maconha e de Chanel 5. Quanta frescura!!!! Eu cheguei a sair com um ramo de orquídeas nas mãos!!! Pra que e porque? Pourquoi pas? Eu tava triste e era bacana ser triste e raivoso.

A Ilustrada ajudou a criar tudo isso. Os caras chegaram botando banca e todo mundo lia. Não havia internet, então voce lia o papel. E era bombardeado por informação afirmativa. Os caras partiam pro pau. Pau em Caetano, pau na tv, pau no cinema brasileiro, pau na mpb, pau puro. As reações eram a base de socos. Voce tinha de ler tudo isso. Voce não ia na internet procurar o que te interessa. Voce tinha de ver e absorver tudo. E os caras falavam muito. O texto era longo, com letras pequenas. E o design do jornal mudava todo dia. O título podia vir em japonês, colorido, no rodapé ou à esquerda. Podia até não ter título. E os que escreviam foram os melhores.

Fico assombrado com o fato de que alguns textos que li a mais de vinte e cinco anos ainda me acompanham. Tem no livro um texto de Flavio Rangel que saiu em julho de 78 !!!!! E eu me lembrava dele!!!! Fala do bebê de proveta e de Marx, Freud, Einstein. Do quanto o homem tem diminuido. Fala do bilhete que George Sanders ( ator ) deixou ao se suicidar ( "encheu" ). E tem uma frase que mudou minha cabeça: " Deus morreu, Marx morreu, Freud morreu, e eu mesmo não estou passando muito bem."
E nos anos 80 chegam os meninos recém formados. Caio Túlio Costa, Otávio Frias, Matinas Suzuki ( um gênio! ), Marcos Augusto Gonçalves, Inácio Araújo, Barbara Gancia, Pepe Escobar. Os caras botaram Foucault, Lacan e Hannah Arendt no jornal. Faziam crítica de um disco pop citando Cioran e Kierkegaard. Misturavam Clash e Blondie com Faulkner e Derrida. Era um jornalismo elitista, esnobe, ultra culto e diário. Quando Chet Baker morreu, Matinas podia escrever dezenas de laudas sobre seu amor por Baker. E como eles escreviam!!!!
Foi o tempo em que Humphrey Bogart se tornou moda. Assim como o cinema noir, a nouvelle vague e os livros policiais baratos. Mas eles misturavam esse pop com a turma alemã ( Adorno ), com as novas bandas inglesas ( foram eles que inventaram a moda de que Londres é o máximo ), a moda japonesa ( Comme les Garçons ) e a tecnologia de ponta. Era um futurismo que unia tempos. Tudo podia e eu ia junto. A Ilustrada era educação que pirava.
Eles atacavam o Estadão, o Rio, a Bahia, e adoravam jazz, cinema e beats.
Ruy Castro e Sergio Augusto vieram. Já veteranos, se sentiram em casa. Sergio foi o melhor crítico de cinema que já li. Me ensinou a amar musicais e westerns. Ruy contava histórias sobre BB, MM e CC. E sobre Billie Holliday e Frank Sinatra. Tudo podia desde que fosse trés chic!!!
Texto que não esqueci ( de agosto de 85 ) by Matinas Suzuki ( o grande ):
"Chamo de juveniilismo a um disperso, mas cada vez mais popular, movimento de negativismo que se espalha pelos jovens de SP."
E vai Matinas por montes de laudas discorrendo sobre a "moda" paulista de se ser melancólico, de se negar tudo, de se vestir de preto. Ele cita de Cyd Charisse à Lyotard, do rock londrino à Lebrun, e chega a bela conclusão: tudo é uma forma oca de sedução. E em mundo de sedutores, em que todos tentam seduzir, não pode haver contato real, pois inexiste o seduzido. E tome Helio Oiticica, Arrigo Barnabé, Julio Bressane. E tome eu lendo tudo isso, esse monte de referências e indo procurar saber o porque de Matinas citar Oiticica, quem era esse tal de Lyotard e porque Cyd era tão fascinante.
Coluna de Paulo Francis, 1986. Sei ela decorada.
" Adoro Pd James e Rendell, mas nada é melhor que Proust e Stendhal.....a humanidade não resiste a muita verdade.....amigos profundos só os temos na nossa geração.....leio a noite e gostaria de ir para o sul no inverno, isto é Saul Bellow, um poeta." Francis, meu patriarca, vai nesse texto de Fidel a Janio, de Edmund Wilson a Wall Street, de Eliot a Pinter. Quem lia isso? Eu lia, meus amigos da FIAM liam, todo mundo comentava todo dia. Uns odiavam, outros amavam, todos liam e reagiam. E Francis atacava baianos, Lula e o feminismo. O que ele teria a dizer de Tiririca e de Chavez?
Caetano na Folha falando de Francis: É uma bicha amarga. Bonecas travadas são danadinhas.
Como eu disse, se brigava muito. O mercado ainda não nos disciplinara.
Os dez melhores westerns por:
Paulo Francis: Warlock de Dymytrick ( vou escrever só o number one de cada um ), Sergio Augusto: Rastros de Ódios de Ford, Inacio Araújo: Onde Começa o Inferno de Hawks, Ruy Castro: O Homem que Matou o Facínora de Ford, Pepe Escobar: Johnny Guitar, José Trajano: Shane, Renato Pompeu: Winchester 73.
Perry White ( Casseta ) escrevia lá. Em 86 ele deu de título: AJOELHOU TEM DE GODARD.
E eis o irritante e glamuroso Pepe. O cara que é imitado por todo crítico moderninho até hoje.
Eu odiava Pepe Escobar. Tudo o que ele escrevia ia contra o que eu pensava. Basta ver isso:
Em julho de 84 ele diz que Michael Jackson é Jesus Cristo. Que o filho Dele voltou à Terra como neguinho gênio, com ginga e com mensagem de prazer. Hoje eu acho esse texto maravilhoso, mas na época eu não tinha o humor para entender. Pepe era assim. Ao escrever sobre o Clash citava anarquismo e Lenine, ao falar do The Who tascava um Cioran e um Camus. Para ele a noite de SP era como Londres em 67, aquela coisa Mick e Marianne Faithfull, a vida era meio Paris 1925, meio Montmartre e Cocteau.
Texto dele: " No principio era o tédio. Depois foi criado o Punk."
É fantástico o estilo de Pepe! Leiam:
"...Imagem congelada. Foco. Guitarrista abre linha de fogo. Mergulho na pressão. É a bateria. Executores/carrascos. Música nua acariciada por velocidade. Júbilo maníaco...."
Isso é crítica musical. É esse o modo de ouvir e sentir que mais me influenciou. Mesmo que naquele tempo eu tanto o odiasse ( porque não o entendia ).
Mais dele:
"...Johnny Rotten dissolve todas as contradições pelo abandono. Lautreamont e Rimbaud..."
E havia Nicolau Sevcenko. Isto ele escreveu em junho de 86. E me marcou para sempre ( também a decorei )
" Saiu... os corações mais trêfegos já podem se tranquilizar, podem jogar no lixo todo o estoque de valium e diempax, dar folga a unhas e cigarros. Já se pode trocar a insonia pelo pesadelo: até que enfim saiu o novo disco dos Smiths!......." E para falar desse disco Sevcenko fala de Nietzsche, de Yeats e de muito Oscar Wilde.
Vem Marcelo Coelho, que em entrevista de agora ( 2008 ) diz que a história realmente terminou. Que tudo em arte já foi feito, não há mais o que possa chocar. Que só nos resta a eterna repetição, citações sobre citações.....
E é IMPOSSÍVEL outro momento como a da Ilustrada dos 80. Pois além de a arte ter se tornado pura mercadoria, a pulverização da informação tornou inviável um tal agrupamento de talento.
O cara que quer ler sobre Clash vai ler só sobre Clash. Não vai querer saber nada sobre Adorno ou anarquismo. A informação é hoje só informação, não mais educação.
FIM DA HISTÓRIA.
Franceses, agora, fazem greves e protestos. Sempre eles.
Mas veja: eles não pedem uma nova politica, um novo mundo, uma revolução. Pedem que tudo fique como está. Eles pregam a não-mudança.
Em todo movimento, hoje, há o medo. Medo de sonhar e de errar.
A história acabou. O mundo é isso. Vivemos o máximo dos máximos. Todo o nosso caminhar era para chegar aqui.
Os anos 80 foram a constatação desse fim.
Lendo-os hoje os acho arrogantes, tolos, esnobes, anglófilos, e surpresa, escreviam mal, sem clareza.
Mas tinham coragem, brilho, idealismo, ingenuidade, fé no leitor, FÉ NA INTELIGÊNCIA DO LEITOR. O Jornal não devia ser útil. Devia ser vivo. E era. Como era.