AS FESTAS

No calor das nove da manhã bombas explodem nas ruas para nos acordar. É mais um dia de festas na aldeia. Todos devem acordar juntos, comer juntos, dormir a mesma hora.
Então é descer o morro onde fica a casa branca de meu avô e ir a algum bar tomar o café da manhã. Longo café, tentativa de cura de ressaca. O resto da manhã, calor seco e céu sem mancha, é caminhar ao rio onde meninas de biquini tomam cor e nadam na água fria. Lá sou o brasileiro, em tempo em que ser brasileiro ainda era ser raro. Sobre o rio há uma ponte feita por romanos e um menir no alto de colina, posto por celtas. Lagartos correm de nós e a vegetação é idêntica a de faroeste americano. Rochas enormes, mato seco, árvores modestas. E uma estrada cheia de curvas que nunca termina. Passa um carro a cada meia-hora. Correndo e cantando pneus.
O almoço é sonolento e é comunitário. Cabritos, arroz, saladas, peixes, linguiças, vinho, pão. Dá sono e a sesta, longa, abafada, moscas zumbindo, é na cadeira da varanda, ao sol. De lá se vê toda a aldeia, esparramada em descampado. O cemitério, todo branco e um campo de futebol ao lado. Montanhas ao longe de onde se ouvem fogos que estouram no céu. Na praça a banda chega e algumas pessoas vão passeando pelas barracas. O sono é bom.
Nunca anoitece. Um jogo de futebol entre aldeias rivais e o baile em que casais dançam de rosto colado. Jogo de tiro ao alvo, cassino, cartas de poker, adivinhadores, ciganos, doces e salgados. E vinho verde, branco, tinto, doce, rubi e rose. Missa na igreja antiga, missa na igreja nova. Cavalos passam trotando.
O fogueteiro, de fogo, solta fogos que fazem desenhos no céu. Está escuro afinal, e o vento vem forte. Alguém grita: Fogo!!!! Detrás da casa de meu avô o monte está em chamas. O fogueteiro deixou o fogo pegar. A festa sobe o morro e com galhos secos bate nas chamas para as apagar. Me vou na multidão e entro na fumaça e nas cinzas. Me dão um facão para derrubar arvorezitas. Entre chamas altas vejo um velho forte tossir e surgir imundo. É meu avô, que é só fuligem e está rindo. Apagar um incendio é parte da festa.
O sino toca. Mais festa só amanhã. Haverá corrida de carros. Durmo fedendo a fogueira.
Na manhã seguinte vejo meu avô partir rumo a plantação. O burrico vai com ele. Todos na rua me chamam de " um dos Cristos". É o sobrenome de meu avô.
Festa é fazer coisa junto. Festa é estar feliz com monte de gente. Festa é comunhão. Ser parte de massa que se sente una.
No morro há uma gruta romana. Um gaiteiro toca sua música sobre essa gruta. Dizem que tem gente que se perdeu lá. Dizem que tem bruxas que vivem lá. Os lobos se foram. Mas há uma raposa.
Sentado na varanda bebo uma cerveja. Tudo aquilo sou eu. Apaguei o fogo, bebi o rio, dancei a música, gargalhei de noite. A gruta é minha e a bruxa faz parte de mim. O lobo está desaparecido em mim, mas minha raposa não. Eu sou meu avô. Sou meu pai e sou minha mãe. A igreja é minha, o cemitério é meu. Sou um dos Cristos. Pertenço.
A vida é muito maior que uma neurose. Que um desejo. Que um medo. A vida é imensamente maior que eu. Ela é mestra minha, eu lhe pertenço.
Talvez seja isso amor.