O TEMPO E O CÃO- MARIA RITA KHEL ( PARTE II, O CÃO )

Em momentos de doida angústia eu olhava meu cão e o invejava. Via-o deitado ao sol, observando o vazio e absolutamente calmo. Meu cão em casa em minha casa. Meu cão parte de paz em minha vida. Seu tempo é o tempo do planeta e sua vida é a vida de todo cão que houve e haverá. Mas nós, humanos, hoje, somos obrigados a criar nossa vida e nosso sentido todo dia. Nos questionar todo segundo e tentar ser feliz de nosso jeito. Livraram-nos da opressão de família e igreja, mas nada nos deram para nos ajudar.
Narrativa. Nesse livro se fala muito de narrativa. É o que me incomoda no cinema atual. Mostra-se um fragmento de vida, mas não se narra uma história. Não se criam mais os grandes personagens com suas grandes frases e suas grandes histórias. O que nos é dado são recortes de flashs de gente picotada. Nada que nos leve para dentro de nosso espírito.
Claro que há as excessões. Spielberg sempre tentou contar uma lenda. Assim como Coppolla. Mas eles ( a maioria, mesmo quando o filme é bom ) esbarra na dúvida. A questão que os abate: "Alguém ainda crê em narrativas? Alguém ainda sabe as escutar? " E então mesmo filmes que precisavam da fé-narrativa se perdem na falta de habilidade em se contar: Benjamim Button e que tais.
Mas os livros também são assim. Em mundo técnico só se lê livro "útil". Livros que ensinam, biografias exemplares, filosofadas. Ler Proust porque é simplesmente bom. Quem ainda?
O MORRO DOS VENTOS UIVANTES deu tanto sentido a minha vida quanto um ano de análise.
Problema: Khel fala das sociedades medievais onde se trabalha sem pressa, onde o trabalho te dá tempo para devanear, onde a mente flutua durante o trabalho. E onde narrativas são feitas todo o tempo. Contam-se histórias não só após o dia, são narrações todo o tempo. Trabalha-se cantando, contando, sonhando. Problema meu: Eu vivi esse mundo. Parar de sonhar, de recordar, de religar, de devanear, de ligar coisas, é para mim impossível. Mas este mundo me pede isso. Faça, faça, faça, faça!
Quero meu tempo de volta. Ouvir e ver histórias. Longas narrativas, completas, vastas, com pessoas de verdade, multi-facetadas, simbólicas, sublimes. Quero meu tempo para amar. Ver, conhecer, escutar, sentir falta, querer, desejar, tocar, amar. Quero meu resgate.
Garotos se drogam para poder dar um tempo. Como foram treinados a estar sempre fazendo coisas ( ser feliz é estar em movimento ) só se permitem parar quando estão drogados. Um modo idiota de se cessar a correria. Uma pena.
Eu mantenho e preservo. Não quero que derrubem aquela casa porque ela simboliza a derrubada de uma narrativa. Eu revejo meus velhos filmes. Me trazem as histórias arquetipicas de passado e futuro. Me ensinam a ignorar o tempo que escorre e nada significa. Me embrenho em imagens onde antes e depois são uma possibilidade e não uma lei. O tempo não existe em mim. Amei voce agora e amarei voce depois.
Meu cão filosofava. Nick é seu nome. Em seu olho de boxer eu via tudo. O fluir calmo do momento, a paz de se estar em casa, a preguiça tediosa e feliz, o dar de ombros. Não ser dono de si e sim ser parte de tudo.
E é só isso.