O TEMPO E O CÃO- MARIA RITA KHEL ( PARTE I, O TEMPO )

Proust tem o tempo. Ler Proust é como habitar o tempo. Tempo, tempo, tempo, tempo.
Sempre fui obcecado pelo calendário, pela estação. Não existe eu sem relógio no pulso. Tenho ódio pelo que passa, pelo que ignora o que foi, pelo coiso. Ódio e fixação pelo ponteiro.
O mundo virou lugar de coisos. Automóveis. Sacrificamos jardins por mais uma vaga na garagem. Sacrificamos praças por mais uma pista. Cinemas por estacionamentos. Mas é mais que isso. Precisamos ser, NÓS MESMOS, precisamos ser como uma Ferrari ou uma Mercedez. Temos de correr, brilhar, ter aceleração. É obrigatório ser pleno de acessórios. Funcionar. O tempo é o tempo do motor. De zero a cem em poucos segundos. A paisagem voa pela janela e nada pode ser bem visto. O que passa é sombra que corre. O que passou não existe mais.
Pior: voce é carro sem motorista. Voce é o que corre e o que dirige. Tensão e atenção. Pra sempre. A estrada é o mundo que passa. Seus olhos no horizonte. O agora é já ido. Pra frente.
Henri Bergson: A memória é o espírito. Um carro não tem espírito. Não pode ter memória.
A não ser a funcional memória de se saber ligar, engatar e guiar.
O posto de gasolina para um carro é e sempre será, um posto de gasolina. Nada de relevante poderá vir de lá. Para um carro as coisas são o que são.
Mas eu........
A tarde em que fiquei de barriga pra cima, aos 7 anos, vendo as nuvens se dissolverem no calor de janeiro. Alí o tempo não existia. Ele era eu. Se o tempo é espírito, eu me deitava em seu colo. Elaborava minha riquesa. Fui Proust e sua estada na praia, e suas garotas em flor, e sua madeleine.
Mas nós.......
As máquinas nos humilham. Nos põe de joelhos. Uma bomba que cai do céu humilha o cavaleiro experiente e sua espada bem treinada. Um computador humilha nossa velocidade. A rede de amizades via internet humilha minha agenda. As fotos da galáxia humilham nosso planeta. A linha de montagem humilha o artesão e o shopping center humilha a lojinha de bairro.
Mas é pior: todos esses trecos estão mortos. E nós sabemos disso. Humilhados não por um soldado melhor, um homem mais esperto ou um rival muito mais bem dotado. Humilhados por coisas mortas. Pelo que não tem passado.
Voce não pode mais deitar e ver nuvens. Seria algo que te faria sentir fracassado. Um tonto jogando tempo fora. Voce não pode mais sair com os amigos para fazer nada. Voce sai para se divertir. Voce é obrigado a se divertir. Assim como seu filho tem a hora exata para brincar e para descansar. Ninguém assistirá as nuvens no céu.
Estou cansado de dizer: só me interessa o que é pra sempre. Me esparramo pelo tempo. Corro atrás do que não me importa. Meu desejo é adiado até sempre. Um deprimido?
Deve existir um tempo pra mim. Onde eu possa viver com minha alma serena. E meu desejo se apresente em tempo e lugar apropriado. Minha memória é meu tesouro.
Vampiros são moda de um tempo morto. Adolescentes que não mais se permitem ser idiotas. Romances sem ingenuidade e paixões sem adiamentos. É tudo pra ontem. Eu serei ontem.
Heathcliff e Catherine. Se voces são doenças dispenso a cura. Meu momento é todo. O tempo não existe. O que é novo nasce velho e o agora já foi. Diziam que o mundo atual é muito infantil. Jamais!!!! Sofremos de senilidade-juvenil. Falta de coragem, falta de inocencia, falta de frescor.
Todo artista odeia o tempo em que vive.