CONTEMPLAR

... parou e observou que sobre as nuvens deveriam viver deuses. Isso enquanto suas ovelhas pastavam e seus peixes secavam ao sol e no sal. Contemplando a vida, desperdiçando seu tempo, ele sentia a sublimidade de tudo, a sua própria atemporalidade.
O espírito cresce enquanto olhamos sem desejar nada, no momento em que deixamos o olhar vagabundear pela vida. Nossa visão lambe as coisas da vida e elas passam a responder, falam com nossa alma que folga na vida.
Heidegger diz que isso se perdeu. O mundo quer, hoje mais que nunca, que nosso olhar veja apenas o objetivo, o que interessa, o trabalho que é útil. Então voce nem percebe a árvore que caiu ou o prédio sem razão. Voce apenas olha objetivamente : uma vaga para seu carro, o relógio que corre e um corpo que acende seu desejo. Voce passa pela vida penetrando nas coisas, comendo as coisas, querendo as coisas e se transformando numa dessas coisas. E será comido, querido, penetrado e transformado.
Se contemplamos somos contemplados. A onda se torna nós, o sol se torna nós, o vento se torna nós.
Mas o patrão quer que voce deixe de ser bobo. Deve produzir e quem produz nada pode contemplar. No século XVIII voce começa a ser obrigado a não contemplar mais, no século XIX voce luta por contemplar, tenta reverter a história, no século XX voce perde o dom da contemplação. No XXI voce não se lembra mais do que seja isso. As nuvens perderam seus deuses e agora essas nuvens nem mais existem em sua vida. Foram embora.
Não se contempla uma lâmpada. Não se contempla uma TV. E nem a tela do computador. Mas se podia contemplar a chama da vela, a janela da casa e uma página em branco. Voce olhava a chama e via sua saga de amor, e pela janela entendia a rua e a cidade. A página em branco lhe fazia dialogar com sua alma. Não existe contemplação na eletricidade. Só é possível a ação. O trabalho.
É necessário o resgate desse dom que é nosso maior tesouro. Mas nunca olhar um jardim com hora marcada ou ver o mar como possibilidade de se fazer algo. É preciso vagar a vista pela vida, ver o que não se pensou querer ver, deixar o olho levar a mente a perceber.
Nossa arte nada contempla mais. A pintura tornou-se discurso e o cinema é parque de diversões. Tudo é eletricidade que nos leva ao trabalho físico, ao esgotamento, a pressa.
Cesse a atividade e olhe a pedra ou um pente no banheiro. Observe o desenho do azulejo e o movimento da cortina ao sol. A rachadura no cimento pode ser a chave para algum novo caminho. O homem se fez assim : olhando/contemplando o mundo e vendo por trás de tudo um outro mundo. Filosofia, religião, arte.
Nunca precisamos tanto de poetas.