MAL DO SÉCULO

Um cara bem sucedido. Descreva esse cara...... excelente saúde, físico perfeito, jovem, sorridente. Vários amigos, vários amores, sempre fazendo coisas legais. Antenado às novidades, rápido e ágil, cheio de poder. Engraçado, acabamos de mirar uma máquina. Funcional, revisada, último tipo, leve e rápida, belo design. É a descrição de um carro ou um celular.
Depressão. Um homem jamais conseguirá ser máquina.
Um cara invejável. Pele sem mancha ou ruga. Magro´porém forte. Sangue sem colesterol. Taxas corretas de açúcar. Não fuma ou bebe. Alongado e concentrado. Sem gastrite e sem prisão de ventre. Oito horas de sono. Verduras e legumes. Muita água. Dentes brancos.
Depressão. Um homem jamais é apenas seu corpo.
Coragem. Honestidade. Honra. Inteligência. Lealdade. Fé. E poder também. Esses eram os valores pelos quais a humanidade sempre se pautou. Ser um bom filho, um bom pai, um bom cidadão e um bom cristão. Objetivos hipócritas, porém, humanos. Qualidades INTERIORES.
Hoje. Fotos tiradas às centenas. Para provar ao mundo o quanto sou vivo, o quanto sou bacana, o quanto sou feliz. Não mais existo perante Deus e cidade, existo apenas em seu olho. Me coloco em imagens de tela, em vozes distantes, tento existir. Veja : eu sou isto que voce é.
Ontem. Eu existo pelo meu nome. Sou Silva, filho de Silvas. Sou brasileiro, sou paulista. Mais, sou filho de Deus. Existo visto por Deus. Sou continuação de meu pai.
Diz minha gurú ( Maria Rita Kehl ) citando Winnicott : a vida só pode ser agora se houver uma narrativa. O passado carregado para o futuro. Pois o futuro nunca existe, é apenas uma idéia, e o presente torna-se passado no momento em que surge. Apenas o passado nos dá o CONFORTO da segurança.
Máquinas não têm passado. Ela é somente um presente. O corpo não tem futuro. Será a morte. Sendo máquina e corpo vivemos sem passado e sem futuro. Um hoje que é nada.
Mal deste século : DEPRESSÃO.
Não quero e não posso ser máquina. Não sou apenas um corpo. Páro. O deprimido renega a máquina, ele deixa de funcionar. O deprimido nega o corpo, ele sente dor e medo. Ele quer ser humano.
Mal do século XIX : histeria e esquizofrenia. Não sou amado por Deus. Não tenho família ou país. Estou fora do coração do mundo. Não consigo crer ou seguir as regras. Quero ser livre.
Hoje o mundo é o doente do século XIX. Não cremos, não pertencemos, não temos regras. Somos livres. Herdamos a saudade de ser humano.
Onde meu lar ? Todo o tempo nos vigiamos. Ser máquina de ponta, ter corpo funcional. Dá pra crer que não era assim ? Que ninguém se preocupava em parecer jovem, parecer alegre, ter dentes brilhantes ? É inacreditável, mas a pressão já foi bem menor.
Máquinas são revisadas. Precisam fazer aquilo para que foram feitas.
Pensamos que a vida é uma doença. Funcionar é saúde. Quem funciona é máquina, humanos vivem. Viver é envelhecer, perder, chorar, ter medo, ficar doente e morrer. Viver é falir. A vida não " funciona", ela é. Remédios e virtualidades para esquecer de viver. Curar a vida.
Sem envelhecer nada cresce. Sem o vazio da perda não existe ganho do novo. Sem choro não se toma decisão. Sem o medo a vida nada vale. Sem doença não existe a interdependencia. Sem a morte inexiste a criatividade. Se viver é anti-funcional, curar a vida é não viver. Quarto limpo e vazio onde nada acontece.
O deprimido grita por acontecimentos. Sua vida acontece. Ela desaba.
Mesmo eu, ser saudade, que ora pela idade média, que ama os simbolistas decadentes, eu, homem-passado, homem vitoriano, sou miserávelmente um humano século XXI. Apressado, afobado, estressado. Tentando se curar da vida e se deprimindo. Me comparando a máquina ( e sempre perdendo na comparação ) e querendo ser um corpo ( todo o segredo da vida TEM de estar na química e na biologia !!!! ). Um filho do século, procurando os rastros de seus passos e nunca os encontrando. Vazio como o quarto limpo.
O homem hoje pergunta : O que quero ? O que tenho ?
As perguntas sempre foram : O que sou ? De onde venho ?
O deprimido ainda pergunta quem é. Ele sabe que já perdeu.